natalino |
Marcos Monteiro*
Há uma crise mundial e uma crise nacional e uma crise
existencial. Além de todas as coisas serem interligadas, a crise é própria da
vida e faz parte da nossa crise particular nesse “festival de hipocrisia que
assola o país”. Festival que seria a atualização e o desdobramento do “febeapá” de Stanislaw Ponte Preta,
saudoso jornalista Sérgio Porto, que gostava de contar histórias sobre o
“Festival de Besteiras que Assola o País”, e isso nos anos setenta. O trabalho
dele hoje seria dobrado.
Hipocrisia é uma palavra derivada da máscara que os atores
da Grécia Antiga usavam para representar personagens e máscaras é o que todas e
todos usamos na sociedade do espetáculo. De manhã assisto aos atores dos
noticiários de televisão e suas representações teatrais carregando nas
expressões faciais de surpresa, compaixão ou indignação e percorro as redes
virtuais onde posamos artisticamente de felizes. Quando passamos para a
variedade de contatos pessoais, escolhemos as faces e as expressões
fisionômicas de cada vez e para cada expectador representamos a personagem que
desejamos ser.
Então eu fui encontrar Madalena. Ela se encontra no abrigo
do Bom Pastor aqui em Maceió, depois de uma complicada cirurgia e de uma vida
cheia de peripécias. Pessoa simples e religiosa, da Congregação do Bom Pastor,
mas dessas que brincam sobre o fato de ter de assistir a missa todos os dias em
vez de estar envolvida como antigamente com a luta por direitos de operárias,
sem-terras e sem-tetos. Tem como referenciais cristãos atuais pessoas como
Arthur Peregrino, Marcelo Barros, Eduardo Hoonaert, Frei Beto, e como passados
Dom Helder Câmara, José Comblin e Dom Pedro Casaldáliga, cristãos que colocam a
luta por justiça como tarefa maior do que a vivência litúrgica.
Conversamos e o tempo fez uma pausa e entendi porque minha
irmã Mary Ruth queria que eu conhecesse Madalena. Ela tem um modo próprio de
habitar o tempo e nem dá para perceber que idade tem, somente que tem vivido
muito e que desliza pela história sem essa ansiedade e inquietação que
caracteriza a nossa época. A sala era pequena e ela sorriu para dizer que não
se sentia confinada e o seu sorriso era um imenso abrigo em que eu me sentia
acolhido. A crise em que estamos todos mergulhados faz estremecer o nosso
espaço e o nosso tempo, mas o sorriso de Madalena parece ser maior do que
qualquer crise e maior do que o tempo e maior do que o espaço.
Fala-se muito na distribuição desigual de renda, mas
associada há uma distribuição desigual de poder, uma distribuição desigual de
espaço e uma distribuição desigual de informação. A despolitização intencional
da sociedade, a crise agrária e de moradia, e o monopólio dos meios de
comunicação compõem o cenário do nosso desequilíbrio existencial. A voracidade
na ocupação de terras, a especulação imobiliária, a apropriação do solo pelo
capital internacional, desfigura o nosso espaço trazendo a sensação de que o
nosso chão pode se abrir a qualquer momento. Um latifundiário sempre sedento de
mais espaço (e mais poder) contrasta com Madalena que transforma qualquer
saleta em imensa amplidão. Em vez de ser grande por fora preferiu ser grande
por dentro, então lhe basta habitar em si mesma para ser feliz.
Mas voltemos ao festival de hipocrisia que assola o país.
Ele pode ser resultado tanto do fato de que vivemos hoje na sociedade do
espetáculo, em que o parecer é mais importante do que o ser, e também da
distribuição desigual de informação. Informação tornou-se hoje mais do que
nunca um estruturante da vida, propiciando oportunidades e perigos. Esses são
exatamente os dois lados do idiograma chinês que significa “crise”: uma
situação que pode levar ou ao crescimento ou à destruição. E não podemos ter
dúvida nenhuma de que os conglomerados de comunicação estão selecionando e
distribuindo informações que provocam ou aceleram crises.
A nossa vida tornou-se uma grande produção televisiva, uma
novela que nos convida a representar papéis. Governadores, deputados, juízes,
se movimentam diante de câmaras e precisam não somente fazer pronunciamentos,
mas interpretar falas acompanhadas das adequadas expressões gestuais. Nesses
momentos o como se diz é mais importante do que o que se diz e nos impressionam
as contradições envolvidas nesse processo todo. Grandes corruptos clamam contra
a corrupção, incita-se violentamente o combate à violência, discriminam-se
pessoas em nome da democracia e em nome do direito combatem-se direitos.
Madalena não parece precisar ser diferente e não aparenta
gostar de usar máscaras. Sedento de transparência, bebo na simplicidade dos
seus gestos e faminto de esperança me abrigo no seu sorriso. Saio da minúscula
sala em que me recebeu e volto para as imensas avenidas da cidade, mas me sinto
diferente. Acaricio cada uma das
máscaras que carrego na mochila e sigo em frente meio encabulado, meio
incomodado e meio desafiado.
Que texto belo, Marcos! Maravilha conhecer Madalena através de seu olhar. Quando os espaços fora de nós se tornam sufocantes, penso que resta-nos a máscara de ser quem a gente melhor e maior consegue ser no momento. A hipocrisia, em seu sentido grego, destituída dos valores agregados até hj, pode ser uma estética da existência, capaz de nos fazer suportar as contingências, as adversidades da vida. Boa apresentação pra todos nós!!! "Quebre a perna"! rss bjooooooooooo
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