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Marcos Monteiro*
As “comissões da verdade” se
espalham por todo país, para celebração de uns e irritação de tantos, para
ouvir e entender um tempo de difícil consignação. Como a “verdade” tem muitas
faces, o que se procura agora é a verdade dos vencidos, derrotados pela
ditadura, tachados pela mesma de “subversivos” e “terroristas” agora
considerados “heróis”, mania do tempo de jogar com as palavras, transformando
os significados. Mesmo sabendo que os heróis tem calcanhares, o privilégio de
ouvir os depoimentos em Feira de Santana traz recordações e esperanças em
meio à dubiedade da vida e às
brincadeiras da história.
A semana passada, assisti a três
depoimentos de pessoas perseguidas, difamadas ou torturadas, acusadas do crime
de tentar mudar o mundo, a partir de bandeiras diversas e complexas, como
“nacionalismo”, “democracia”, “reformas de base”, “socialismo” ou “comunismo”.
Em alguns momentos essas bandeiras confluíam e em outros divergiam, mas a
ditadura conseguiu provocar uma frente única contra si mesma. Os depoimentos em
pauta foram de um pequeno comerciante, Moacir da Costa Cerqueira, proprietário
da “Casa das Canetas”, nacionalista, de um político, vereador, Antônio Carlos
Daltro Coelho, filiado na época ao partido comunista e de um militante de
movimentos sociais, Jaime Cunha, como a AP (Aliança Popular) e a Organização Revolucionária Marxista –
Política Operária (ORM-Polop), hoje advogado.
Cada depoimento trazia uma contribuição específica para se
entender o momento vivido pelo país. Antônio Coelho, o “Coelhinho”, acompanhou
a política do país em toda a sua complexidade, fazendo parte do governo
municipal do cassado pelo golpe militar, Chico Pinto, figura popular histórica.
Nos anos setenta, o “Coelhinho”, então vereador, foi inquirido por uma junta
militar pelo crime de ter feito uma moção pela indicação do Prêmio Nobel da Paz
a Dom Helder Câmara, considerado um dos maiores inimigos da ditadura militar.
O depoimento de Jaime Cunha trouxe detalhes da trajetória de jovens estudantes
idealistas que também queriam mudar o mundo. Radicalizando na mesma proporção
do endurecimento da ditadura, foi perseguido e julgado à revelia como
terrorista e aliciador de menores, o que lhe deixou perplexo e convicto de que
estava condenado à morte, a essa morte clandestina que tantos companheiros
experimentaram. Em um dado momento foi tomado de uma emoção incontrolável,
choro que interrompia a narrativa, mas que narrava de modo mais forte as
tensões vividas no período. Escapou da prisão, da tortura e da morte, mesmo
continuando suas lutas.
Mas, talvez, o depoimento mais interessante tenha sido o de
Moacir Cerqueira. Ele não estava ligado a nenhum movimento sindical, não era
militante de organizações revolucionárias, nem filiado a nenhum partido de
esquerda, era apenas um comerciante pai de família e queria defender o país da
voracidade do capital internacional que impedia um crescimento econômico mais
autônomo do nosso país. A bandeira do nacionalismo cabia inclusive no mastro de
alguns militares, inclusive ditadores.
Ele não foi ameaçado, preso ou torturado, mas vivia a
angústia do pensador herege, que convivia com grupos diversos em rodas de
conversa, esses bares da vida que agrupam pensadores dissidentes. Quando a
pressão aumentou fugiu para Salvador, mas voltou logo porque a tensão estava em
todo o canto. A polícia invadiu o cinema, em que assistia a um filme com sua
esposa, e saiu arrastando outra pessoa. Voltou para Feira e para a sua vida,
acrescentando o medo à sua rotina de comerciante e às suas convicções intactas.
Ele representa esses heróis anônimos, imersos em seus cotidianos, mas que
também anseiam por mudanças e por um mundo melhor.
Tudo isso me remeteu a Bertold Brecht e à sua peça “Galileu
Galilei”. Galileu enfrentou um outro tipo de comissão, a famosa Inquisição, em
que a verdade era a verdade do dogma e dos poderosos. Na peça, Galileu pretende
mesmo é mudar o mundo, por acreditar “na força suave da razão” e que “pensar é
um dos maiores prazeres da raça humana”. Defender que a terra gira ao redor do
sol e não o contrário seria enfrentar fortes convicções e “verdades” religiosas
dogmáticas, deslocando e ameaçando a distribuição de poder.
Um amigo tenta lhe dissuadir chamando-o de desgraçado por
acreditar na razão e na humanidade. “Os poderosos não podem
deixar solto alguém que saiba a verdade,
mesmo que seja sobre as estrelas mais distantes!” E Galileu é silenciado
pelo tribunal da inquisição. Nega a redondeza e o movimento da terra, para
garantir a vida. Um seu discípulo, consternado e decepcionado, o encontra
depois e lhe diz: “Infeliz a terra que não tem heróis” e Galileu lhe responde:
“Não. Infeliz da terra que precisa de heróis”.
Na esteira dos “nunca mais” (o
livro de denúncias “Brasil nunca mais”, o lema repetido “tortura nunca mais”),
escrevo aqui o meu desejo. Que se multipliquem sempre os espaços de narrativas
de tantas vítimas de tantos abusos, para que nunca mais precisemos de tantos
heróis.
(Citações do livro: BRECHT, Bertold.
Vida de Galileu. São Paulo:
Abril, 1977.)
Feira de Santana, 10 de agosto de
2014
*Marcos Monteiro é assessor de
pesquisa do CEPESC. Mestre em Filosofia, faz parte do colégio pastoral da
Comunidade de Jesus em Feira de Santana, BA e do grupo de pastores da Primeira
Igreja Batista em Bultrins, Olinda, PE. Também faz parte da diretoria da Aliança
de Batistas do Brasil e é membro da Fraternidade Teológica Latino-Americana do
Brasil.
CEPESC – Centro de Pesquisa,
Estudos e Serviço Cristão. E-mail cepesc@bol.com.br, site www.cepesc.com.
Fone: (71) 3266-0055.
Que vida infeliz e solitária essa de herói. Interessante é que é tão infeliz e solitária quanto a do oprimido e a do opressor.
ResponderExcluirAcho que a história recente do Brasil, em especial este período dificil, precisa ser esclarecida e revisitada, estar atento as estas narrativas e refletir sobre elas, compreender melhor para que nunca mais retornemos a momentos de escuridão e tirania. Por mais complicado que seja o exercício da democracia, ditadura nunca mais.
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