terça-feira, 15 de julho de 2014

UMA COPA COM UMA PRIVADA

Marcos Monteiro

A semana na Vila não foi lá das melhores. Teve a discussão pública entre Valdelice e Paranísio, com barraco garantido e indexação de palavras de baixo calão. E outras discussões com barracos menores porque de casais não tão referendados. Teve a notícia da morte de Plínio Arruda Sampaio, unanimidade local depois de Paranísio apoiar. E teve a gripe com tosse braba de Mãe Silícia que deixa toda a Vila assim com a preocupação meio gripada também. Teve o encerramento da Copa do Mundo com a premiação merecida da Alemanha. Mas, antes de tudo teve a goleada também merecida de sete a um sobre a seleção brasileira dessa mesma Alemanha. E aí foi demais.

Não adiantava Paranísio explicar mais uma vez que Copa do Mundo era somente um torneio entre milionários assistido por milionários porque isso todo mundo entendia sem querer entender. Quando o milionário Neymar quebrou uma vértebra, o pessoal ficou meio quebrado, porque entendia que Neymar era tão bom jogador que talvez até tivesse lugar no banco do atual Maravila F. C, em que o centroavante Cocada ainda reina absoluto, como melhor jogador do mundo, apesar de seus trinta e nove anos.

Sem Neymar, o Brasil ficou dependendo dos milionários Hulk e Oscar que se esforçaram, mas não conseguiram enfrentar os milionários da Alemanha, ainda mais com a defesa sem o milionário Tiago Silva, cumprindo suspensão. Aliás, futebol talvez seja o único lugar onde milionário é suspenso ou expulso. Pena que o milionário Felipe Scolari e os milionários Parreira e Murtori não foram expulsos antes da Copa por algum juiz também milionário, mas sensato, que aproveitasse o ensejo e também expulsasse mais milionários, como os comentaristas tipo Galvão Bueno e outros.

Passar de futebol para a política era passar de Felipão para Dilma, mas novamente para a explicação de Paranísio que nesse sistema capitalista também a política era coisa de milionário. Portanto, a candidatura da milionária Dilma tinha a oposição do milionário Aécio e do outro milionário Eduardo Campos ou de outros milionários ou candidatos a milionários.

Então teve aquele comentário sobre essa estranha Copa em que os pequenos enfrentaram os grandes com muita força e que nem um papa argentino nem um Deus brasileiro conseguiram garantir a taça aqui nesse Brasil que nem sempre lembra que é sul-americano. O comentário somente serviu para Paranísio dar continuidade à sua doutrinação socialista e explicar mais uma vez que também a religião é coisa de milionário nesse mundo em que o único Deus que manda é o Capital.

Então, religião, política e futebol, esse reduto do sistema capitalista, no cotidiano da Vila Maravila, tornou-se espaço de resistência de outra possibilidade de vida, em que a existência não venha com etiquetas com preços afixados. Nesse campinho em que se joga com gosto e por diversão, onde as pessoas convivem apesar de suas diferenças, nessas rodas em que os assuntos se apresentam sem censura e o assunto da religião é benvindo entre outros e nessas reuniões em que as decisões mais importantes são tomadas a partir de longas discussões, futebol, política e religião passam a ser componentes existenciais de vida que não pode ser vendida.

Em uma roda dessas se lembrou dos estádios construídos e dos postos de saúde não construídos, mas entre uma coisa e outra se lembrou da insegurança do torcedor que pode morrer porque um louco qualquer pode lançar uma privada sobre a torcida sem pensar em consequências.

E então, Paranísio, aproveitando a deixa sem dó nem piedade, assegurou que as privadas têm sido jogadas sobre nossas cabeças há muito tempo. A copa do mundo mesmo era uma grande privada arremessada sobre uma grande torcida que paga sem saber o preço das manobras do capital no mundo todo. A FIFA é essa grande empresa privada multinacional que conseguiu fazer do futebol uma imensa fonte de lucro, produzindo, implementando e comercializando essa estranha mercadoria chamada paixão. Estranha essa construção com privada na copa.

Mas também as multinacionais privadas vêm dominando o nosso alimento, o nosso lazer, a nossa arte, a nossa educação, o nosso tempo, o nosso espaço, a nossa vida. As privadas vêm sendo arremessadas sobre as nossas cabeças há tanto tempo e com tanta força que nem podemos entender como sobrevivemos até agora. Somos cidadãos que resistem em um mundo que não compreendemos, precisados de reaprender o significado da palavra violência.

Resta-nos, talvez, a dignidade do pequenino gaulês Asterix que, sob a ameaça do grande império romano, tinha somente o medo que o céu caísse algum dia sobre a sua cabeça. E nesses dias em que a poderosa Alemanha derramou um sete a um sobre as nossas esperanças, podemos continuar enfrentando todo tipo de adversidade e ameaça de fronte erguida, torcedores corajosos e apaixonados pelo jogo da vida, somente com esse medo não mais surrealista de que uma privada caia em algum momento sobre nós.


Feira de Santana, 14 de julho de 2014.

Um comentário:

  1. Sempre prazeroso ler tuas narrativas bem-humoradas e provocativas, Marcos. Grande abraço paranaense pra você!

    ResponderExcluir