quinta-feira, 29 de agosto de 2013

O choro de Etenildo


Beijoca tropeçou na bola e Etenildo começou a chorar, exatamente às 16 horas e 32 minutos, de um inesquecível BaVi, na tarde de domingo de 9 de julho de 1978, segundo a precisão maníaca de Gerlúcido, responsável pela hipótese futebolística sobre o interminável choro que dura até hoje. Depois de dois anos, o diagnóstico teve de dar lugar a outras possibilidades, até porque, tendo o Bahia vencido por quatro a zero, sendo um dos gols do próprio Beijoca, sensacional tabela com Douglas, o choro não foi interrompido.
           
O tropeço de Beijoca teria prenunciado catástrofes, menos de um mês depois da seleção brasileira de Cláudio Coutinho ter sido “campeã moral”, quando todo brasileiro preferia ter sido “Campeão Imoral Mundial de Futebol”, como a Argentina que subornou a seleção peruana para se classificar para a final da Copa do Mundo. Mas o fato de Etenildo continuar chorando dois anos depois das idas e vindas do futebol não dava mais para convencer a ninguém dos argumentos cuidadosos de Gerlúcido.
           
A hipótese seguinte foi política, levantada anônima e cuidadosamente porque vivíamos uma ditadura. E o choro de Etenildo passou a ser símbolo de resistência. Desmoralizada a oposição, esmagada a luta clandestina, restaria ao cidadão comum o direito de chorar, cândida e enigmaticamente. A ditadura passou, o choro continuou e a hipótese também, embora meio empoeirada. Não caiu porque ninguém ainda percebeu a grande diferença entre democracia e ditadura. Mas, apesar dos olhares e grupos que mantém Etenildo no altar do orgulho ético e político nacional, outras explicações lutam por seu espaço.
           
Na verdade, a partir de 1985, a casa e a vida de Etenildo foram objetos de verdadeira peregrinação acadêmica de pesquisadores e cientistas dispostos a desvendar esse fenômeno, interessados em estabelecer a causa desse estranho sofrimento contínuo. Há uma verdadeira literatura à disposição, espalhada pelas universidades do mundo todo, podendo-se acompanhar até diacronicamente os aspectos do choro de Etenildo, medido, descrito, filmado e interpretado por especialistas diversos durante muito tempo. Explicações fisiológicas, psicológicas, sociológicas e existenciais estão erigidas e fundamentadas pela cuidadosa investigação exigida pelo setor.
           
Paralelamente à investigação científica, a romaria de todo tipo de religioso, bizarro ou não, espalhava vaticínios sobre fim do mundo, admoestações morais e tentava transformar Etenildo em santo, médium ou vidente, de acordo com o interesse da agremiação.
           
Cerca de dez anos depois, a humanidade deixou de se interessar por Etenildo que pôde, a partir daí, viver o seu choro continuado, incorporado ao patrimônio da vida comum, sem a necessidade de ser exótico nem de prestar contas a qualquer setor ou hipótese sobre o seu singular modo de ser. Como cidadão comum sempre trabalhou, foi e vai ao cinema, casou, tem filhos e sua mulher diz que chora dormindo e até quando faz amor (garante que muito bem), o que lhe deixa particularmente excitada. Segundo Gerlúcido, o último pesquisador chamava-se Charles Edwin, era canadense e deixou a casa de Etenildo, às duas horas e quatorze minutos da tarde de 05 de fevereiro de 1996.
           
Desse azáfama científico restou a inconclusão característica das grandes pesquisas. O choro de Etenildo pode ser o resultado de um distúrbio orgânico, de natureza glandular, da dificuldade de sintetizar a serotonina, ou ter outra explicação, ou não apresentar nenhum motivo orgânico. Também, pode ser o resultado do embate social que se trava entre polaridades diversas, sendo ele uma espécie de receptor social de conflitos. Mas também pode não ser. Significaria a materialização da angústia fundamental da natureza humana ou o tardio sentimento de culpa pela resolução do complexo de Édipo ou a captação mediúnica do sofrimento das vítimas de Hiroshima ou nada disso.
           
Etenildo continua chorando o seu choro nasalado ou aberto, soluçante ou contínuo, alto ou baixinho, choro sem consoantes, que a grande dor sempre prescinde delas. De que padeciam os humanos quando inventaram as vogais? Não fala nada, somente chora; quando provocado ao riso, consegue apenas um esgar, arremedo de sorriso em meio ao seu gemido descontrolado. Todos esperam que pare de chorar um dia e Gerlúcido estará atento para cronometrar o acontecido. Muitos dizem que somente a morte interromperá o seu choro, mas outros garantem que continuaremos a ouvir o seu choro, durante e depois do funeral.

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