Beijoca tropeçou na bola e
Etenildo começou a chorar, exatamente às 16 horas e 32 minutos, de um
inesquecível BaVi, na tarde de domingo de 9 de julho de 1978, segundo a
precisão maníaca de Gerlúcido, responsável pela hipótese futebolística sobre o
interminável choro que dura até hoje. Depois de dois anos, o diagnóstico teve
de dar lugar a outras possibilidades, até porque, tendo o Bahia vencido por
quatro a zero, sendo um dos gols do próprio Beijoca, sensacional tabela com
Douglas, o choro não foi interrompido.
O tropeço de Beijoca teria
prenunciado catástrofes, menos de um mês depois da seleção brasileira de
Cláudio Coutinho ter sido “campeã moral”, quando todo brasileiro preferia ter
sido “Campeão Imoral Mundial de Futebol”, como a Argentina que subornou a
seleção peruana para se classificar para a final da Copa do Mundo. Mas o fato
de Etenildo continuar chorando dois anos depois das idas e vindas do futebol
não dava mais para convencer a ninguém dos argumentos cuidadosos de Gerlúcido.
A hipótese seguinte foi política,
levantada anônima e cuidadosamente porque vivíamos uma ditadura. E o choro de
Etenildo passou a ser símbolo de resistência. Desmoralizada a oposição,
esmagada a luta clandestina, restaria ao cidadão comum o direito de chorar,
cândida e enigmaticamente. A ditadura passou, o choro continuou e a hipótese
também, embora meio empoeirada. Não caiu porque ninguém ainda percebeu a grande
diferença entre democracia e ditadura. Mas, apesar dos olhares e grupos que
mantém Etenildo no altar do orgulho ético e político nacional, outras
explicações lutam por seu espaço.
Na verdade, a partir de 1985, a
casa e a vida de Etenildo foram objetos de verdadeira peregrinação acadêmica de
pesquisadores e cientistas dispostos a desvendar esse fenômeno, interessados em
estabelecer a causa desse estranho sofrimento contínuo. Há uma verdadeira literatura
à disposição, espalhada pelas universidades do mundo todo, podendo-se
acompanhar até diacronicamente os aspectos do choro de Etenildo, medido,
descrito, filmado e interpretado por especialistas diversos durante muito
tempo. Explicações fisiológicas, psicológicas, sociológicas e existenciais
estão erigidas e fundamentadas pela cuidadosa investigação exigida pelo setor.
Paralelamente à investigação
científica, a romaria de todo tipo de religioso, bizarro ou não, espalhava
vaticínios sobre fim do mundo, admoestações morais e tentava transformar
Etenildo em santo, médium ou vidente, de acordo com o interesse da agremiação.
Cerca de dez anos depois, a
humanidade deixou de se interessar por Etenildo que pôde, a partir daí, viver o
seu choro continuado, incorporado ao patrimônio da vida comum, sem a
necessidade de ser exótico nem de prestar contas a qualquer setor ou hipótese
sobre o seu singular modo de ser. Como cidadão comum sempre trabalhou, foi e
vai ao cinema, casou, tem filhos e sua mulher diz que chora dormindo e até
quando faz amor (garante que muito bem), o que lhe deixa particularmente
excitada. Segundo Gerlúcido, o último pesquisador chamava-se Charles Edwin, era
canadense e deixou a casa de Etenildo, às duas horas e quatorze minutos da
tarde de 05 de fevereiro de 1996.
Desse azáfama científico restou a
inconclusão característica das grandes pesquisas. O choro de Etenildo pode ser
o resultado de um distúrbio orgânico, de natureza glandular, da dificuldade de
sintetizar a serotonina, ou ter outra explicação, ou não apresentar nenhum
motivo orgânico. Também, pode ser o resultado do embate social que se trava
entre polaridades diversas, sendo ele uma espécie de receptor social de
conflitos. Mas também pode não ser. Significaria a materialização da angústia
fundamental da natureza humana ou o tardio sentimento de culpa pela resolução
do complexo de Édipo ou a captação mediúnica do sofrimento das vítimas de
Hiroshima ou nada disso.
Etenildo continua chorando o seu choro nasalado ou
aberto, soluçante ou contínuo, alto ou baixinho, choro sem consoantes, que a
grande dor sempre prescinde delas. De que padeciam os humanos quando inventaram
as vogais? Não fala nada, somente chora; quando provocado ao riso, consegue
apenas um esgar, arremedo de sorriso em meio ao seu gemido descontrolado. Todos
esperam que pare de chorar um dia e Gerlúcido estará atento para cronometrar o
acontecido. Muitos dizem que somente a morte interromperá o seu choro, mas
outros garantem que continuaremos a ouvir o seu choro, durante e depois do
funeral.
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