sexta-feira, 5 de agosto de 2011

DE PEREGRINOS E DE COWBOYS

Marcos Monteiro*

Na pequena cidade de Canudos, interior da Bahia, o encontro era para dar continuidade aos preparativos da próxima romaria, no cada vez mais próximo outubro. Entre outras coisas, era preciso fazer contas e as cifras giravam em torno do valor de treze mil reais. O movimento esperado de peregrinos e visitantes aquecerá a economia do lugar em cerca de alguns milhares de reais, mas também era preciso fazer contas de outras coisas que a vida não se resume a dinheiro, os símbolos também fazem parte de qualquer panorama econômico.

A romaria tem sempre essa força simbólica de voltar aos tempos da Canudos de Antonio Conselheiro. Cidade sui generis de símbolos sui generis, tipo de economia que não pode ser enquadrada facilmente em modelo nenhum. O povo corre para formar com o místico a mística e mítica cidade de Belo Monte, a Canudos, experiência de cidade e organização esmagada cruelmente pelo recente exército da recente república. Cai a monarquia, cai a cidade de “rios de leite e ribanceiras de cuscuz” e caem literalmente as cabeças de milhares de canudenses, homens, mulheres e crianças. Cruel costume de se arrancar do corpo a cabeça dos derrotados em guerras e sedições.

Na Canudos de Conselheiro os deserdados da terra encontravam terra e oportunidade para realizar sonhos, sonhos simples de tempo e lugar para pessoas proibidas de viver, o tempo todo às voltas com o difícil exercício de sobreviver. Canudos cresce rapidamente, mas não sobrevive como lugar. Curiosamente, continua a viver e a crescer como símbolo e desafio analítico, inclusive em sua dimensão política e econômica. Se não pode ser classificada como experiência comunista, também não pode ser reduzida a um modelo espontaneísta ou a qualquer modelo liberal. Sob o sábio comando religioso do Conselheiro, grupos e pessoas agiam como espécie de comissões a providenciar espaço e oportunidade para pessoas e famílias que acorriam a Canudos, mesmo no meio da guerra desigual.

Nesses momentos, não consigo deixar de lembrar de várias pequenas experiências de comunidades distribuídas casualmente pela história do planeta e comparar com a crise mundial que ameaça a economia globalizada de nosso sistema. Se os números de Canudos administram no máximo quatro zeros, a dívida externa dos Estados Unidos possui zeros que não acabam mais. A maior economia da terra tem a maior dívida do mundo e a sua dificuldade em saldar débitos cresce como uma grande onda prestes a se tornar um tsunami a demolir a estabilidade de países em todos os continentes. Ainda bem que os Estados Unidos conseguiram autorização do seu Congresso para aumentar a sua dívida para ajudar a pagá-la. Dá para entender?

A complexidade da economia e do sistema econômico atual alimenta o endividamento. Todo mundo deve a todo mundo e fazer dever é o modo do mundo todo se organizar. Talvez seja um pouco de ingenuidade imaginar que o mundo melhorará imediatamente se os EUA começar a pagar os seus débitos financeiros. Mais esperançosos estaríamos se esse mesmo país resolvesse pagar as suas outras dívidas, de natureza simbólica. Todas as grandes potências mundiais, especialmente as que comandaram grandes impérios causaram dores e danos que ultrapassam a dimensão financeira.

A nação norte-americana deve reparações ao Japão (Hiroshima e Nagasaki), ao Brasil, ao Chile, à Argentina (apoio logístico a golpes de ditadores), ao Vietnam, ao Irã e ao Iraque (ataques direitos), a Cuba e Nicarágua (boicotes econômicos) e a muitos outros países. Talvez a reparação deva ser maior ainda porque tais atitudes foram efetuadas em nome da liberdade e da democracia, coisa tão esdrúxula quanto a base de Guatánamo, aterrorizadora cadeia levantada em nome do combate ao terror. Talvez seja preciso igualmente reparar os danos causados pela difusão hollywoodiana da imagem do cowboy exterminador de índios e do agente secreto acima da lei como paradigmas da justiça.

Claro que os EUA não são a única nação a dever reparações simbólicas. Se todas as nações e grupos opressores começarem a pagar as suas dívidas, grupos, cidades, estados e nações poderão então ousar experimentar gestões políticas e econômicas fora dos modelos patenteados pelas nações mais opulentas. Enquanto isso não acontece Canudos passadas e atuais se sentirão ameaçadas pelas baionetas que cortam cabeças. Mesmo assim, teimosamente, continuarão a ser edificadas, incentivadas pelas lembranças e pelas romarias dos peregrinos, novas tentativas de organização política e social, novas e indestrutíveis Canudos.

Feira de Santana, 05 de agosto de 2011

*Marcos Monteiro é assessor de pesquisa do CEPESC. Mestre em Filosofia, faz parte do colégio pastoral da Comunidade de Jesus em Feira de Santana, BA. Também faz parte das diretorias do Centro de Ética Social Martin Luther King Jr. e da Fraternidade Teológica Latino-Americana do Brasil
CEPESC – Centro de Pesquisa, Estudos e Serviço Cristão. E-mail cepesc@bol.com.br, site www.cepesc.com.
Fone: (71) 3266-0055.

Um comentário:

  1. Um amigo economista me lembrou do "tudo que é sólido desmancha no ar".
    Manter a teimosia da esperança de tempos mais comunitários e solidarios, me parece um sonho tão distante... Suas palavras me dão algum animo num momento em que cada vez mais desacredito de soluções coletivas.

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