Dessa vez quem estava muito irritado era eu.
Mâe Silícia ouvia com toda a paciência minha metralhadora de argumentos, atenta à minha infindável indignação. A decisão de um juiz que deixara uma criança praticamente desamparada em sua pensão, pendendo para o lado do pai policial que alegava não ter condições de arcar com o percentual requerido, deixara-me com um sentimento misturado de raiva e impotência. A mãe, como sempre, levava a culpa de situações alegadas, vista como aquela que abandonara o lar, fizera pouco caso das crianças e coisas assim. E o juiz, não sei porque cargas d’água, aceitara a petição.
– A justiça é cega – falei – se ela não pode ver, não sei para que a balança ... E ainda leva uma espada nas mãos... Arma branca e falta de visão é mistura perigosa...
Mãe Silícia me olhou com um ar divertido e me corrigiu;
– A justiça nunca foi cega, filho – ela é zarolha.
O cheiro forte de café que subia do bule e o estrelar dos ovos na frigideira ocuparam o espaço deixado pela minha estupefação. Mãe Silícia me surpreende sempre e sou obrigado a qualquer tipo de reação, um sorriso, uma gargalhada, um movimento de braço ou de perna, qualquer coisa. Dessa vez, simplesmente fiquei parado uma eternidade, até ir me desmanchando pouco a pouco em risadas convulsivas e dobrar-me em uma gargalhada que não sabia terminar.
Uma justiça que por defeito de visão só pode enxergar um lado, lembrou-me o dito sarcástico de Bernard Shaw, quando ironicamente dizia que a lei britânica era igual para todos, proibia tanto ricos como pobres de pedir esmola, roubar pão e dormir debaixo da ponte...
As relações entre justiça e injustiça, a idéia de que a equidade passa pelo respeito às diferenças e que para que as coisas se ajustem um prato da balança deve estar sempre pesando para algum lado, não resolveu a minha questão. Porque sendo vesga, a justiça só enxerga um dos pratos, e sempre o prato que não precisa. A justiça tende sempre para o lado do rico, do branco, do homem, privilegia quem já é privilegiado.
Zarolha, a justiça apresenta excesso de visão e falta de convergência. O olhar embaçado e enviesado se encontra sempre do lado errado, visão permanentemente distorcida. Como parte do sistema, está estruturada para manter o mesmo, não podendo enxergar de outra forma. A sua presumível neutralidade, representada pela cegueira, seria um ideal, mas também uma impossibilidade.
A imagem de uma espada na mão de uma justiça cega já apresenta os seus senões. Pode punir de modo aleatório, é verdade, mas cega e injustamente. Nas mãos de uma justiça zarolha, os golpes dessa bendita espada possuem uma constância e regularidade mais fácil de ser entendida. A justiça pune apenas aquilo que cabe no seu olhar tendencioso.
Fico imaginando que levar a justiça para um especialista não deve resolver a questão. No desequilíbrio que se tornou o nosso sistema judiciário, não sei se interessa uma justiça isenta, capaz de enxergar os detalhes e decidir a partir dessa luminosidade visual. Melhor seria deixar que a justiça permaneça zarolha, mas mude de olho.
Para ser justa em um mundo injusto, para ser reta em um mundo oblíquo, precisaria de um oftalmologista diferente. Desses que em vez de curar a doença muda apenas a configuração do olhar. Seria bom que a justiça fosse cega somente de um olho, ou continuasse. Mas o olho bom fosse aquele que enxerga o pobre, a mulher, o negro, o índio, proscritos e proscritas nessa sociedade desigual.
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