segunda-feira, 4 de abril de 2011

A história de Zé Cotó

Chamava-se José e não tinha a perna direita. A maldade do apelido o fizera Zé Cotó, claro, mas o seu bom humor era a segunda perna, ele mesmo dizia, e quando dizia abria aquele sorriso luminoso e encantador que assegurava o seu equilíbrio nos caminhos da vida. Se somente isso já merece comentários, era também jogador de futebol, nos garante Seu Madeira, e um dos melhores, reserva daquele maravilhoso time, o melhor de todos os tempos, cuja escalação Seu Madeira nos repete para que nunca esqueçamos: Terêncio, Biuzão e Magela, Loureiro e Genival, Rubenírio e Aratunga, Roído, Rapaz, Biu do Efeito e Caçula.

Zé Cotó jogava somente com a perna esquerda e com o apoio de uma muleta. Como alguns dos inesquecíveis craques do Brasil e do mundo fazia com a esquerda o que ninguém fazia com as duas, mas aprendera também a usar a muleta para conduzir a bola o que lhe trouxe confusões. Se na pelada tudo era permitido, para jogar no time em torneios oficiais, e todo mundo queria que jogasse, foi preciso luta e argumentação. Os times oponentes sempre protestavam, especialmente o Ipiranga, como era de se esperar. Óbvio que se Zé fosse um perna-de-pau (infame e esquisito trocadilho) não haveria objeções, mas era craque mesmo, na reserva apenas porque nesse time não tinha lugar para todos os craques, apenas os excepcionalmente excepcionais.

Nada no regulamento (se confiarmos nas palavras do Seu Madeira) proibia um jogador sem uma das pernas (nem mesmo sem as duas) jogar bola. Mas os adversários apelaram para a obrigação de disputar campeonatos com chuteiras e não quiseram dar o mesmo direito que já haviam dado a Caçula, o ponta esquerda bom de bola e bom de conversa. O jeito foi confeccionar uma chuteira especial para a muleta e calar a última objeção. A muleta de Zé Cotó calçada com uma chuteira apropriada era mais um espetáculo nesse time e nesse esporte espetacular.

Complicado era quando Zé se aproveitava do alcance da muleta para fazer gol o que fazia de vez em quando, deixando juiz coçando cabeça, adversário irritado e torcida feliz, quase em delírio. Nessas horas ele saía correndo de muletas e sorrindo como nunca, inventando jeitos de fazer rir povo que gostava de rir. O gol sempre tinha que ser validado, coisas de futebol e manias de regulamentos. A chuteira da muleta de Zé podia se orgulhar de alguns gols decisivos, quando entrara para substituir algum jogador importante.

Com a perna esquerda, driblava, lançava e chutava; faltas, então, eram chutes quase indefensáveis. A muleta e o bom humor eram a outra perna que lhe garantia amigos e amigas, algumas poucas namoradas, porque ele era uma pessoa meio religiosa (alguns diziam religiosa e meia), católico, apostólico, romano, mas de Romão, o Padre Cícero, seu padrinho de muitas datas.

Pois bem, nessa história de jogar bola e de ir à missa, como bom católico, apareceu pela Vila uma freirinha que Seu Madeira garante que era muito bonita, Irmã Angélica, e Zé Cotó, aliás, José Apolinário da Conceição das Mercês, seu nome de batistério, tomou-se de suspiro pela freira e, se já era católico ficou quase beato. Pensou, pensou, e decidiu que estava em pecado, perdidamente apaixonado pela mulher do próximo. E que próximo! todo mundo sabe, lembra-nos de novo Seu Madeira, que toda freira é casada com Jesus Cristo.

Confessou-se pecador primeiro ao marido, mas argumentou que ele com tantas freiras no mundo, possuía um harém, e ele, coitado, pecador e cotó, não tinha nenhuma. Teve certeza da autorização de Jesus e partiu para a segunda parte do ato.

Queria se confessar com a freira. Não podia, não devia, o padre não deixava, o sacristão obstava, o povo aconselhava, mas ele não se demovia. E tanto fez que (na Vila Maravila acontece de tudo) conseguiu ser ouvido no confessionário pela Irmã Angélica, a linda freira, objeto de seus desejos e de sua cobiça. Confessou o seu pecado, com tanta eloqüência e ardor, que a freira se sentiu obrigada a carregar na penitência, muito pai nosso e muita ave-maria e muito joelho em cima de caroço de milho, mas sem jeito. Toda semana o penitente voltava ao confessionário, cada vez mais pecador e apaixonado.

Bem, a irmã Angélica não era muito chegada a futebol, mas começou a ir para os jogos, primeiro devagar, depois torcendo um pouco, depois pulando de hábito e tudo, especialmente quando Zé Cotó fazia gol. Ele, quando avistava a irmã na torcida, enlouquecia de vontade de jogar e se multiplicava em sorrisos; e tanto lutava que terminava fazendo um gol que ela lá dentro sabia que era para ela.

O coração, havia entregado a Jesus Cristo para sempre, mas o sorriso, primeiro, e depois tudo o mais, corpo que não cabia mais no hábito, hábito que não cabia mais no corpo, foi sendo entregue a Zé Cotó. Este, foi ficando cada vez mais com cara de deslumbrado, até que um dia o escândalo chegou com toda força. Flagraram os dois perto da sacristia. A freira, sem o hábito que estava jogado pelo chão e Zé, sem roupa e sem muleta, mas com o sorriso dos místicos quando avistam o paraíso.

No esconde-esconde das conveniências, conseguiram abafar o caso o melhor possível, até o dia em que os dois casaram na Igreja, ela trocando o hábito pelo véu e grinalda, com as vestes brancas fingindo virgindade e toda a Vila fingindo que acreditava.

Zé Cotó jogou bola ainda muito tempo, sempre na reserva, por motivos que já sabemos: os outros jogadores eram muito bons. A irmã Angélica agora era Dona Anja, torcedora fanática do Maravila F. C., especialmente desse reserva bom de bola e bom de humor. Tiveram filhos sim e o sorriso dele ficou maior ainda. Dona Anja sempre foi bonita e um jeito assim meio misterioso lhe acompanhava sempre a face. Continuavam religiosos os dois. Zé não tinha nada para reclamar de Jesus Cristo. Pelo contrário, até permitia que a mulher conversasse todo dia com o ex-marido.

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