Conseguir coletar uma história de Seu Dolivaldo é privilégio lingüístico. Mestre da retórica do monossílabo e do grunhido, da palavra dura jogada sem ornamentos, Seu Dolivaldo traz para a conversação a beleza do dito inesperado, insistentemente cru, quase violento. E a história foi mais uma desse nosso Jesus nordestino, caminhante pela nossa história e pela nossa vida, trazendo acontecimentos e lições que nos levam a pensar.
Sem conseguir reproduzir a “dialética dolivalda”, mas tentando interagir com a mesma, vamos aqui distribuir essa história que pertence ao depósito oral da nossa gente, caminhos construídos à margem do discurso e da teologia oficial, cheios de significados e possibilidades.
Jesus prometeu almoçar na casa de uma família muito pobre (de nada ter – diz Dolivaldo) que comprou uma galinha gorda e temperou com gosto, com o feijão verde e arroz colorido de sempre. No dia acertado, aparecem sucessivamente uma criança faminta, uma velhinha encurvada, e uma sucessão de mendigos andrajosos. Cada um pede comida, cada um recebe meio constrangidamente para quem serve um pedaço da galinha de Jesus.
Por último, às quatro horas da tarde, uma família de retirantes, magros (só osso e pelanca – explica Dolivaldo) dividem os restos da galinha gorda de Jesus. O pobre, sua mulher e seus filhos, que passaram o dia sem comer, esperando Jesus, ficam muito decepcionados e o pobre vai reclamar.
Jesus surpreende e diz: – Fui, cheguei e comi, o tempo todo. A criança era eu, a velhinha era eu, os mendigos eram eu e eu estava às quatro da tarde partilhando tudo que sobrou. Comi muito e muito me alegrei, recebam a minha bênção.
Seu Dolivado vai dizendo que nessa história, o pobre enricou e começou a fazer festa com tudo que é pobre e com a zoada o vizinho rico invejou e perguntou o que estava acontecendo. Quando descobriu que o pobre estava ficando rico por causa de uma galinha que tinha dado pra Jesus, o rico se mordeu de inveja e convidou Jesus para almoçar na sua casa. Preparou a galinha gorda com a receita de Seu Dolivaldo e esperou.
No dia acertado apareceram uma criança, uma velhinha, os mendigos de sempre e todos receberam uma forte negativa do rico que sempre dizia que não ia dar pra ninguém a galinha gorda de Jesus.
Finalmente, quando, às quatro da tarde apareceu a família de retirantes, o rico não agüentava mais e soltou os cachorros que avançaram latindo para cima do pessoal.
Quando foi reclamar no outro dia, ouviu a mesma explicação, mas de um Jesus muito irritado.
– Apareci sim. Mas você nem uma vez me deu de comer. O que você fez foi soltar os cachorros em cima de mim. E de agora em diante tiro de você minha bênção.
E o pobre foi ficando cada vez mais rico e o rico cada vez mais pobre, até morrer esquecido até pela família.
Refeições com Jesus é um tema recorrente nos relatos bíblicos e isso era sinal de identidade, participação mútua através do rito da comensalidade. O Governo de Deus, anunciado por Jesus, era costumeiramente simbolizado por refeições. Essa curiosa história nos remete assim aos tempos bíblicos, aproximando-os da conhecida hospitalidade nordestina, onde um prato de comida não se nega nem a inimigos.
Pobre e rico, formam um par assimétrico na história que a religiosidade popular percebe como afrontoso. A inversão escatológica da história propõe uma riqueza partilhada com todos, na alegria da festa diária, da galinha gorda que tem pedaço para todo mundo. O pobre se torna rico, mas um rico diferente, que divide espaço, tempo e comida, sinal de uma superação da diferença entre ricos e pobres, pela real solidariedade.
Quando transformo de verdade o meu em nosso, um outro tipo de comunidade e de relação acontece. As palavras “pobre” e “rico” deixam de fazer sentido. Mas também quando isso não acontece, quando o rico enxota o pobre de sua casa, “solta os cachorros”, a maldição da solidão ocupa o espaço não ocupado pela bênção da solidariedade.
O rico esquecido não entende de comida, não entende de galinha, não entende de solidariedade, não entende de Jesus.
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