segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

A roda grande e a roda pequena

Nessa tarde, Mãe Silícia estava de especial bom-humor e em meio a conversas apocalípticas (e quantas catástrofes cabem em uma única conversa), o riso, o dito espirituoso, a observação leve e divertida, corriam soltos.

Lembramos desse nosso Nordeste apocalíptico, cheio de sebastianismos, derivações dessa esperança endêmica havida da volta de Dom Sebastião, o santo mártir, desaparecido na famosa batalha de Alcácer-Quibir, lá pelos fins do século XVI, combatendo os mouros, e pronto para voltar a qualquer momento para inaugurar uma época dourada. Porque apocalipses são assim mesmo, destruição súbita de um tempo para inauguração imediata de outro melhor. E os místicos do Nordeste, de vez em quando, despachavam entre o povo profecias apocalípticas.

Mãe Silícia tem especial admiração por Conselheiro, que de sua Canudos histórica e mítica, anunciava catástrofes. A mais famosa de todas, aquela que dizia que o sertão vai virar mar e o mar virar sertão. Dá até para arrumar alguns fatos para confirmar a profecia.

Outras profecias que correm pela boca do povo dão conta de rios de sangue da altura dos arreios dos cavalos, guerras apocalípticas de sabores acres, estrelas despencando pelo chão, qual frutas maduras demais, mas há uma particularmente enigmática, com a qual começamos a caminhar juntos:

“Chegarão dias em que a roda grande vai girar dentro da roda pequena.”

Roda grande em roda pequena e a nossa conversa começou a rodar, pequena ciranda em que tantas rodas rodavam, conversa balouçante, dança de conversa em que as idéias se seguiam e a imaginação rodava em corrupios sem términos. Quando eu trazia uma idéia, a sábia matriarca trazia duas, quando tentava entender uma nova, trazia três, mais novas ainda, e isso em meio de risos e gargalhadas de nós dois. Dessa ciranda, eu sentia que Deus participava e claro que sorria.

Lembrei de um amigo do interior que me explicava que a roda grande era o custo de vida girando dentro da roda pequena do salário mínimo. Mãe Silícia falou da notícia grande espremida na pequena televisão e também da justiça imensa aprisionada nos pequenos cárceres da lei. Falei da beleza, grande e imensurável, tolhida pelo preconceito do olhar pequeno e Mãe Silícia falou da paixão e do amor encolhidos dentro de casamentos vazios de sentido. Falou também da verdade obrigada a rodar dentro da astúcia do político e do próprio Deus, rodando dentro das igrejas e das mentalidades tacanhas da religião.

Mas, de repente, daquele seu jeito costumeiro, Mãe Silícia inverteu a lógica e perguntou, abrindo caminhos para novas rodadas:

“– E quanto é a roda pequena que faz girar a grande?” – perguntou animada. E eu senti que havia profundas percepções caminhando ao nosso encontro.

Nossa própria conversa havia se tornado uma roda onde rodas grandes cabiam e vinham girando a todo o momento. Mãe Silícia era uma pequenina roda pensante em que a sabedoria do mundo todo parecia girar feliz. E a Vila Maravila parecia aquele povoado pequeno, pequena roda, em que cabiam grandes soluções e se desenhavam grandes utopias.

Éramos, naquele momento, o copo de vinho na mão de Sartre, onde cabia todo o existencialismo, a taça de champanhe de Edgar Morin, holograma da complexidade, e o instante de Kierkegaard, enquanto átomo de eternidade. Éramos também resumo do universo, descrição do teólogo Teilhard Chardin, sobre o modo de ser do humano. Além de tudo, lugar de revelação de Deus, roda pequena em que a transcendência sagrada transbordava em borbotões.

Há textos que aparecem em nossa mente nessas ocasiões, e lembrei de um versículo bíblico que diz que “Deus escolheu as cousas humildes do mundo e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são” (I Co 2,28). Escolheu as pequenas rodas para destruir a soberba das grandes rodas. As pequenas pessoas para destruir a vaidade dos poderosos. As pequenas vilas para destruir a arrogância das grandes cidades. As sábias anciãs para destruir a sabedoria dos presunçosos doutores de plantão.

Roda grande girando em roda pequena, portanto, pode ser anúncio de catástrofe, dessas terminais, destrutivas, que reduzem a realidade a pó, mas podem ser também sinais de esperança, propostas de libertação, de um novo mundo em que as pequenas coisas, os pequenos gestos e as pequenas soluções sejam mais eficazes do que as normas solenes das grandes instituições.

Vamos, por conseguinte, continuar rodando a nossa ciranda do tempo, dança em que Deus e a vida, ávidos de alegria cantem, dancem e se movimentem em círculos de sorriso, em alegria e amor girantes.

2 comentários:

  1. Texto que tece em mim a agradável sensação de que a vida é singela e está sempre em movimento.

    Belíssimo!!! Mãe Silícia é surpreendente em sua sabedoria de vida!!!

    Saudades dos seus textos Madoniram!!!
    Um beijo grande!!

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  2. Êta, Marcos...
    Roda gigante cujo giro perturba nossas pequenas rodas pessoais e institucionais. Saudades.

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