sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

ENTRE A JUSTIÇA E A GRAÇA

A Igreja Batista da Graça na cidade de Salvador, BA, sofreu uma ação de interdição judicial e o pastor ficou temporariamente afastado de suas atividades eclesiásticas. O episódio foi divulgado pelos jornais, apenas porque o Pastor Edvar Gimenes de Oliveira, amigo pessoal, resolveu enfrentar a esquisitice do fato com uma greve de fome. O fato é esquisito por diversos motivos.

Primeiro, a ação judicial é resultado da ação de uma minoria tão minúscula, diante da maioria absoluta que apóia o pastor que o fato se constitui como uma violência interna. Todo o cidadão tem direito de recorrer à justiça, quando se sente lesado em seus direitos, mas há sentimentos e sentimentos. Nesse caso, o bom senso pode ajudar pessoas a não transformarem em legais questões pessoais, em que motivações tais como desejo de poder, vaidade pessoal, ou frustrações quaisquer, embotem a capacidade de julgamento até sobre nós mesmos. A ação partiu de um desembargador, cargo que sabemos, no sistema judiciário, administra uma dose considerável de poder e influência, o que se constitui como um desafio diante de princípios éticos e valores morais.

A relação entre sociedade civil e sociedade política sempre foi complexa, mas nós vivemos um momento singular na história, especialmente diante do fenômeno religioso. A religião é um campo de significações propenso aos exageros e desmandos éticos. No modo de ser de uma igreja batista, entretanto, há mecanismos de decisão e de controle que diminuem a possibilidade de tais excessos. Assembléias, relatórios minuciosos, transparência administrativa e financeira, distribuição de cargos e responsabilidades, transformam as igrejas batistas em associações com um pouco mais de dificuldade de acontecerem desvios. Conhecendo Edvar de muito tempo, sei que ele se sente bem à vontade nesse tipo de associação, tendo o cuidado democrático e a transparência administrativa como marcas de todas as suas gestões, quer em igrejas quer em outras instituições similares.

A greve de fome que o pastor iniciou e que já encerrou diante de fatos novos mais promissores, tem um interessante viés. Pretendeu ser um ato político para chamar a atenção sobre a possibilidade de uma ingerência indevida do estado sobre a igreja. As relações entre estado e igreja são históricas e faz parte da configuração do estado laico considerá-las instâncias separadas. Essa autonomia, obviamente, é relativa apenas diante da lei que gere todas as instituições vigentes no país. Em todos os outros casos, igreja e estado, seguem suas próprias lógicas e caminhos. Essa intervenção, portanto, pode se configurar como uma violência do poder político contra o poder religioso.

A fome é uma estratégia da vida para garantir a sua continuidade. Somos todos animais famintos. Quando usada como instrumento de luta, uma nova qualidade é acrescida à essa fome, lembrando-nos da fome de justiça mencionada no Sermão da Montanha, como palavra de Jesus. Greve de fome é recurso de quem chegou a limites, recurso dos sem recursos, poder dos desempoderados, diante de uma concentração de poder desproposital. Ausência, carência, vazio, transformados em armas de guerra, pequenas pedras na funda de Davi, diante das armas técnicas dos Golias.

Nesses momentos, o estado parece voltar a ser o Leviatã, esse animal artificial terrível que, segundo Hobbes, criamos para nos livrar de nós mesmos. Uma todo-poderosa fera criada para submeter o lobo que nós somos. A história da modernidade pode ser lida como a tentativa de todos para domesticar essa fera. O estado laico e a separação dos poderes, essa trindade profana, executivo, legislativo e judiciário, seriam duas coleiras construídas para facilitar o controle da fera. O episódio em pauta, portanto, coloca todas as nossas conquistas sob judice.

No cenário montado, a relação entre duas palavras, “justiça”, palavra profana, e “graça”, palavra teológica. A justiça é essa impossibilidade matemática: a precisão, o ponto exato, a justeza. A graça é ela mesma uma palavra graciosa, que nos leva a engraçar com pessoas e a achar graça na vida, mesmo em situações esdrúxulas. É um ultrapassar, um acrescentar algo mais a todas as situações, como uma espécie de sopro divino condescendente. Quando a justiça tenta embargar a graça, acontece um desequilíbrio. Os fariseus, que Jesus criticava, eram bons de justiça e ruins de graça. Portanto, a graça tem sempre de prevalecer diante da justiça, senão a própria vida corre o perigo de perder a graça.


Feira de Santana, 24 de dezembro de 2010.

*Marcos Monteiro é assessor de pesquisa do CEPESC. Mestre em Filosofia, faz parte do colégio pastoral da Comunidade de Jesus em Feira de Santana, BA. Também é coordenador do Portal da Vida e faz parte das diretorias do Centro de Ética Social Martin Luther King Jr. e da Fraternidade Teológica Latino-Americana do Brasil
CEPESC – Centro de Pesquisa, Estudos e Serviço Cristão. E-mail cepesc@bol.com.br, site www.cepesc.com.

4 comentários:

  1. OBRIGADO, MARCOS, PELO ILUMINADO TEXTO, DO QUAL DESTACO O SEGUINTE:
    "Nesses momentos, o estado parece voltar a ser o Leviatã, esse animal artificial terrível que, segundo Hobbes, criamos para nos livrar de nós mesmos. Uma todo-poderosa fera criada para submeter o lobo que nós somos. A história da modernidade pode ser lida como a tentativa de todos para domesticar essa fera. O estado laico e a separação dos poderes, essa trindade profana, executivo, legislativo e judiciário, seriam duas coleiras construídas para facilitar o controle da fera. O episódio em pauta, portanto, coloca todas as nossas conquistas sob judice."
    DE FATO, ESSA ODIOSA INTERVENÇÃO DO ESTADO É PREOCUPANTE. SINAL DOS TEMPOS? FORMAÇÃO DO CENÁRIO PARA A ENTRADA EM CENA DO ANTICRITO (PRESONIFICAÇÃO DO LEVIATÃ)?
    QUE DEUS AFASTE DE NÓS ESTE CÁLICE!!!

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  2. Exato,lírico e cristão..foi a melhor "coisa" que eu vi e li neste dia de natal. Parabéns

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