segunda-feira, 15 de novembro de 2010

ORA, DIREIS INVERTER PÊNALTIS

Quando Caçula resolvia jogar bola, jogava, e quando resolvia jogar conversa, conversava. E convencia. Caçula era o famoso ponta esquerda do mais famoso time de futebol de todos os tempos, o Maravila F.C, aquele que tem o goleiro Terêncio no gol, contorcionista de primeira linha, e Biu do Efeito como craque desentortador de bola e defesa adversária, como sempre nos lembra Seu Madeira. Caçula só jogava descalço, concessão da Liga, que entendia o seu caso particular. Mas seus pés descalços só não eram melhor do que sua língua descalça, capaz de namorar as meninas, mas também de voltar apito de juiz.

O juiz da partida era Epifânio de Araújo Brito, folclórico e imponente. Bom juiz, mas com uma queda para a história e para a glória, o que era seu ponto fraco. Sabia de cor e salteado a sua genealogia até a décima geração, antecedentes cheios de participação na história, os famosos Araújo de Brito, que ninguém sabia que eram famosos, até Epifânio explicar, sempre em estilo pomposo de discurso.

Bem, parece que essa história de ser bom de conversa significa, entre outras coisas, descobrir o ponto fraco dos outros. E Caçula, aliás não era nada difícil isso, descobriu logo o desse juiz que adorava uma pose, posava para fotografias certo de que posava para o futuro. “O futuro – já discursara certa vez – é a única coisa que interessa ao presente”. E vamos e venhamos Epifânio conseguiu chegar ao futuro, senão Seu Madeira não estava contando a história e nós aqui não estávamos tentando registrar.

O jogo foi entre o Maravila e o Ipiranga, claro, os dois times que chegaram ao futuro, apesar de em lados opostos. O Ipiranga também era um bom time, mas era do mal. Tinha um técnico cabra safado, João Cirilo, e um jogador cuja maldade havia se tornado proverbial, o Milicunha. Exatamente o Milicunha havia desequilibrado o Caçula dentro da área e a pequena torcida do Maravila havia clamado por pênalti. Mas o lance fora normal, nos garante Seu Madeira, e Epifânio, excelente juiz não se incomodara com a pressão, deixando o lance correr. E o lance correu, rápido, e a bola chegou na área do Maravila F. C, deixando atacante na cara do gol. Loureiro, desesperado, apesar de zagueiro forte mas de poucas faltas, apelou, deu uma tesoura voadora que pegou nas costas do coitado que ainda tocou na bola, entretanto sem nenhuma condição de pontaria, claro.

Impávido, o juiz apitou o pênalti e ninguém reclamou, nem torcida nem jogadores. Somente o Caçula se aproximou devagar e começou a conversar com o Epifânio, enquanto o Milicunha se preparava para cobrar a falta máxima.

Seu Madeira nos diz que observava a cena de longe, na torcida, e só via Caçula gesticulando devagar e Epifânio balançando a cabeça negativamente. Juiz sério não cai na conversa de qualquer jogador. Mas, de repente, o juiz ficou teso e atento, como quem examina um novo argumento, ou como quem deseja ser convencido.

Foi aí que aconteceu o fato inédito. Epifânio colocou a bola debaixo do braço, e solenemente, como era do seu feitio foi até a área do Ipiranga e inverteu o pênalti que, Biu do Efeito, atônito, se preparou para cobrar.

Mas, não foi fácil, o jogo era no campo do Ipiranga, mas Epifânio, descendente dos heróicos embora desconhecidos, Araújo Brito, não conhecia medo nem intimidação. Que alguma coisa não estava lá muito correta foi o fato de não ter expulsado ninguém, ele que era caubói veloz no saque do cartão vermelho. Mas, firme diante dos fotógrafos e repórteres amadores, declarou que estava convencido do pênalti anterior e tinha todo o direito de se arrepender do passado porque tudo que contava na vida era o futuro.

Soube-se depois, muito depois, que fora exatamente o argumento do futuro que Caçula soltou de última hora. Percebendo que explicações, descrição do lance, demonstração de ferimentos, não poderiam nunca demover esse juiz que não admitia ser contrariado, lembrou do ponto fraco e falou sobre glória e história, as duas palavras que moviam a vida e a ética de Epifânio.

Conversando baixinho, daquele seu jeito simples capaz de encantar serpentes, lembrou da história gloriosa dos Araújo Brito e projetou a sua própria gloria futura. Poderia passar para a história como o único juiz do mundo que teve a hombridade de reconhecer um erro e inverter um pênalti.

O argumento era irresistível. Foi pênalti e foi gol e Epifânio de Araújo Brito passou mesmo para a história como o único juiz que teve a coragem de inverter um pênalti. Ainda mais no campo do adversário.

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