segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Jesus, o ferreiro e a macaca

Eu já havia lido o cordel de José Costa Leite sobre a história de “Jesus, o ferreiro e a macaca”, mas ouvir o “o causo” na versão de Mãe Silícia, sempre traz uma nova lição, um novo modo de pensar a vida.

Esse evangelho mítico do Nordeste, desse tempo em que Jesus, acompanhado ou não por seus discípulos, passeava pelas pequenas cidades do interior, nos braços de Mãe Silícia, torna-se coisa viva, cachorro de fazenda ou espigas de milho, daquelas que prometem o cuscuz de cada dia; palavras que cabiam em situações cotidianas, como sempre cabe a sabedoria do povo.

A história sempre vem a troco de alguma coisa, e o troco dessa vez não valia nada, que era o que se achava que valia a Maria do Troco, por quem Mãe Silícia nutria maternal adoração. Acolhida em sua casa desde os oito, agora aos treze anos começara o consumo de craque, consumando para muitos um currículo com muitos lances semelhantes e com brecha para mais.

Não havia faltado ajuda nem de padre, nem de pastor, nem de líderes como Paranísio, único capaz de enxergar vantagens nos hábitos da adolescente. Para ele, Maria tinha criatividade e inventividade para dar e repartir, mas o sistema empurrava mercadoria de segunda categoria para cima de Maria, cobrava caro, e não dava troco.

Mãe Silícia era desconfiada de ajuda demais e me contou essa história de Jesus para apoiar os seus melindres.

Jesus pediu pousada na casa de um ferreiro que se dizia “o mestre dos mestres” e ainda botava o letreiro na porta. De manhã, uma velha pediu esmola a Jesus, quando esse perguntou se ela queria voltar a ficar moça. Diante do sim, pediu licença ao ferreiro, tacou a velha no fogo, acionou o fole, bateu, bateu com o martelo, ajeitou aqui, ajeitou dali, e pronto. Uma moça novinha em folha, não tinha nem quinze anos, saiu prontinha.

O ferreiro ficou espantado, mas como tinha observado tudo, resolveu fazer a mesma coisa com a sua velha mãe. Afinal, se aquele desconhecido, conseguira, ele também quer era mestre dos mestres, ia fazer melhor ainda. A velha queimou-se, levou pancada de martelo, gritou de dar dó, até que queimou-se toda e o ferreiro desesperado, resolveu sair à procura daquele desconhecido.

Jesus prometeu ir olhar a velha, sem garantias, e quando chegou, disse – “passou do ponto, não vai dar pra fazer muita coisa mais não”. Diante do choro descontrolado do ferreiro, Jesus disse de novo: - “Gente eu não consigo mais, mas se quiser uma macaca, eu dou o jeito”. O ferreiro achou que pior do que ter mãe macaca, era não ter mãe nenhuma e recebeu a velha transformada em uma macaquinha nos ombros, suportando o fedor e reclamando somente do tamanho do rabo. Somente então disse a Jesus que, ele sim é que era mestre dos mestres.

Depois que Mãe Silícia me contou essa história, um dia eu soube que Maria do Troco havia sido colocada na famigerada “lista negra”, destinada para o extermínio pelo narcotrático local (os “companheiros do narcô” na exagerada denominação ideológica de Paranísio”), classificada ou desclassificada como “alma sebosa”, epíteto popular para os chamados “sem-jeito”.

Maria do Troco levou oito tiros. Não morreu, mas teve uma perna amputada, como conseqüência da tentativa de homicídio. Por bem, ou por mal, os traficantes a deixaram viver assim. Mãe Silícia a acolheu e a acompanha com todo o carinho de quem recuperou uma filha por estranhos meios, e eu me lembrei da história que ela me contou, do seu medo de que mexessem demais na vida de sua menina, o que, para Mãe Silícia, somente Jesus tinha o direito de fazer.

Os traficantes tinham destruído a sua criança, mas Jesus lhe devolvera de volta, mesmo que não fosse mais a mesma, mesmo que fosse tal e qual a macaquinha no ombro do ferreiro.

“ – Tem coisa – tentou me explicar – que os homens não devem fazer, somente Jesus é que pode dar jeito. Quando se mexe demais, pode passar do ponto, e aí Jesus não pode fazer quase nada. Mas Jesus é o mestre dos mestres, o único que transforma velha em moça. Em último caso, quando não há mais nenhum tipo de solução, pelo menos uma macaquinha ele consegue fazer dos restos de carvão.

Tudo bem, tudo bem, Mãe Silícia é Mãe Silícia e toda a sua sabedoria inesperada, mas fiquei muito pensativo sobre o significado de tudo isso. A sábia anciã não parece ser, e creio que não é mesmo, dessas beatas de igreja que não valorizem as ações humanas.

Então, deixar Jesus agir não pode significar essa resposta simplista de enviar pessoas para rituais mágicos em igrejas cristãs exóticas. Pelo contrário, isso seria tentar fazer aquilo que pertence somente ao Mestre dos Mestres. Talvez seja preciso mesmo não ficar reinventando a roda.

Em alguns casos, seria melhor deixar as forças curativas da vida irem seguindo o seu curso e o diálogo de cada dia e a oração de cada vez servirem de terapia diária para a vida de quem sofre e de quem luta.

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