segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Eu vi a tristeza de Zé Cambraia

Ainda eram sete horas da manhã e Zé Cambraia abrigava no franzido do cenho um sofrimento tão grande que mal conseguia abrir os olhos. Estranhei quando parou no bar, porque sabia que só começava a beber depois do meio dia e bebia somente o suficiente, costumava dizer, e tinha dia que nem bebia. “O suficiente para acender a alma sem desligar o juízo” era a sua frase auto-explicativa e todo o mundo na Vila acordava que Zé era um vagabundo sensato, disponível para tudo e para todos, pronto para uma boa prosa e para um sorriso largo.

Naquele dia, começou a beber cedo, cada vez mais sombrio e cada vez mais silencioso.

Cruzei novamente com ele às seis da tarde e estava começando a cantar cada vez mais alto cantigas de amor, dessas que podem falar sobre tudo, mas sempre terminam rimando com dor. Ainda não tropeçava nos caminhos, mas caminhava devagar, como quem não quer perder o hábito.

A Vila estava sombria na sombra de Zé Cambraia e os provérbios entraram em baixa. Quem podia ficar dizendo nessas horas “Feliz como Zé Cambraia”, “De bem com a vida como Zé Cambraia”, ou “Somente Zé Cambraia é que é feliz”?

O símbolo da vida assoviante, do deslizamento despreocupado, arrastava a vida rudemente, em sofrimento precisado de explicação. Parecia que a bênção de Jesus estava escondida por aí, esquecida de si, esquecida do Zé.

No outro dia, pela manhã, Zé estava rouco de cantar, soluçante de beber e, de garrafa na mão, vociferava palavrões e xingava o presidente, a república, os bancos, inclusive os da praça, e arrastava tropegamente os sapatos velhos para que esses lhe arrastassem. Ziguezagueava e caía, tropeçava e cambaleava, e seguia sem seguir para qualquer canto e lugar.

Um vento frio começou a soprar, a curviana visitando a Vila, esfriando-se no esfriamento de Zé Cambraia. As nuvens foram ficando escuras como os semblantes escurecidos de cada morador.

Somente no terceiro dia Zé Cambraia tombou. Apagou no meio da praça, no chão de relva sem flores, dormida que iniciou trovoadas, e a chuva começou a cair.

Primeiro, devagarzinho, depois torrente crescente até desabar-se em tempestade, lavando as telhas, as paredes, os caminhos de toda a Vila e o corpo e a alma de Zé Cambraia. O pessoal dizia que Zé adivinhava chuva, mas eu sabia que Deus perdera o controle e estava chorando. Um pouquinho, primeiro, dessas lágrimas que escorrem pelo rosto sem avisar, mas depois aquele choro que lhe chora tudo e que lhe sofre todo e que precisa desentupir os diques para que as dores de lá de dentro deságüem em qualquer lugar. Choro coletivo, Deus, anjos, natureza e cada morador que quando não chorava visível, chorava invisível, chorando sem chorar. Eu me garanti o quanto pude, mas depois chorei todos os choros guardados desde criança, até que a borrasca passou.

Foi lá pelas seis da tarde que Zé Cambraia, lavado de tantas lágrimas, começou a levantar. Estupidamente, me aproximei de Zé, com vontade de perguntar, sem saber se o Zé vagabundo, o Zé consertador de tudo e de todas, o Zé disposto a uma conversinha e a uma caminhada, o Zé que sabia se acercar para fazer os outros gostar da vida, ainda poderia aparecer. Mas fiquei em silêncio, com vontade de ouvir cada dor que Zé escondia e cada sofrimento que expulsara, mas Zé nada me contou.

Depois de muito silêncio o que me disse me fez pensar. Talvez seja preciso sofrer o sofrimento para aprender a viver.

– Foi um investimento, pastor – falou se espreguiçando, ainda reaprendendo timidamente os caminhos de voltar. – Eu sempre preciso viver a miséria uns dois ou três dias para no resto do ano poder ser “feliz como o Zé Cambraia”.

2 comentários:

  1. "Seu guarda, eu não sou vagabundo, não sou delinquente, sou um cara carente. Eu dormi na praça... pensando nela!! Seu guarda, seja meu amigo, me bata, me prenda, faça tudo comigo, mas não me deixe ficar sem ela..." bjsss

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  2. Pra continuar com música com a Anísia, "Tem dias que a gente se sente, como quem partiu ou morreu, a gente estacou de repente ou foi mundo então que cresceu ...

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