segunda-feira, 26 de julho de 2010

TODO VAGABUNDO É FELIZ


Geladeira, fogão, máquina de lavar, ferro elétrico, tudo ele conserta, às vezes acerta, às vezes não. Pedreiro, mecânico, eletricista, encanador, agricultor, jardineiro, de tudo ele é um pouco, às vezes resolve, às vezes não. Toca gaita, pandeiro, caixa de fósforo, violão e tem vez que nem desafina. Zé Cambraia tudo conserta e desconcerta, de tudo sabe muito e muito pouco, mas acima de tudo vive de bem com a vida, sempre cantando, assoviando, contando causos, cercado do amor das meninas que às vezes encara e às vezes não, sempre deslizando perambulante pela Vila, disponível para todos e todas.

Ele é o típico vagabundo, habitante de toda cidade pequena, lugarejo, vila. Vagabundo não é preguiçoso, é vagador, vagaroso, ou apressado, somente se as circunstâncias exigem e, vamos e venhamos, quem inventou a pressa foi o diabo. Zé Cambraia é responsável direto pela criatividade proverbial da Vila Maravila: “De bem com a vida como Zé Cambraia”, “Feliz do jeito de Zé Cambraia”, “Somente Zé Cambraia é que é feliz”.

Felicidade e os provérbios de Zé Cambraia eram exatamente o assunto de minha conversa com Mãe Silícia, quando ela me pergunta, assim na bucha, como sempre fazia: “Você sabe por que todo vagabundo é feliz?”

Diante da minha negativa, mais uma história de Jesus, desse Jesus mítico que passeou pelas cidadezinhas do Nordeste, sozinho ou acompanhado de discípulos, disfarçado ou não.

Estavam todas as pessoas importantes da cidade no bar, que bar é lugar de encontro em lugares pequenos, quando Jesus apareceu precisando de companhia. A casa do sacristão ficava a légua e meia de distância e Jesus tinha qualquer negócio a tratar por lá, essas coisas misteriosas típicas do Filho de Deus.

Com agenda cheia, ninguém podia guiar Jesus até a vivenda do tal sacristão. O juiz tinha de preparar os autos de uma audiência, o fazendeiro tinha de receber uma boiada que comprara, o prefeito tinha de prefeitar, o delegado tinha de cuidar da delegacia e até o padre tinha de preparar a missa e, por isso, não podia dar atenção a Jesus. Somente o vagabundo da cidade, tão desocupado e disponível como o nosso Zé Cambraia se apresentou como acompanhante e foi.

Conversante, assoviante, puxante de conversa, junto de um Jesus silencioso, mas com visível contentamento, o vagabundo ia indo, como sempre ia, sem mudar jeito de ser, até chegar à casa do sacristão. Tarefa cumprida, Jesus se volta pela primeira vez e pela primeira vez fala:

– Seja Feliz!!!

Por causa disso, me explica Mãe Silícia, todo vagabundo é feliz.

Saí da casa de Mãe Silícia maravilhado, de bem com a vida, “feliz do jeito de Zé Cambraia”, agraciado pelo evangelho de Mãe Silícia, evangelho da alegria, da felicidade, da graça, da vagabundagem.

Herdamos uma mística e uma teologia do trabalho e do cansaço que alimenta muito bem um sistema que exige sacrifício humano e nos oferece um trabalho estafante e sem graça, pelo qual devemos inclusive lutar. A vida de Zé Cambraia e o evangelho de Mãe Silícia nos leva a repensar essa herança.

Deslizando assoviantes por uma mística e uma teologia vagabundas, talvez conseguíssemos entender essa disponibilidade para a vida e para o outro que passa por outros caminhos que não os que aprendemos. Somente assim, desenredados de agendas, meio zé cambraias, poderíamos ouvir a voz do Filho de Deus: “Sejam felizes”.


4 comentários:

  1. Que delicia de leitura...Cada dia que passa mais admiro D. Silícia...no livro, no Blog e nos reflexos dos ensinos dela em sua vida...rs
    Saudades de vc mano...

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  2. Pastorrrrrrrrrr, que bom reencontrá-lo, amei o texto, pastor Edvar comentou sobre ele no facebook e corri pra lê-lo... saudades...

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  3. Muito bom!
    Mas... Eu já sou quase quase o vagabundo, agora contando com este incentivo agora, ainda mais, do meu pastor... Pronto: Seremos a comunidade dos vagabundeiros!
    hahahaha
    Abraço!

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  4. Camarada, penso que somos em maior número do que os utulitaristas. Assim sendo, não temo em parafrasear sugerindo que nos unamos, pois "vagabundo em casa de malandro não arruma emprego, mas também não passa fome." Desse jeito.

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