quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

NA GALÁXIA DE GUTEMBERG

NA GALÁXIA DE GUTEMBERG

Marcos Monteiro

Desde a invenção da imprensa, os tipos móveis aumentaram a nossa capacidade de comunicação, diminuíram a necessidade de locomoção e a vida passou a ser escrita. Somos personagens de livros que não sabemos quem é o autor e literatura é um tipo de escrita que se resolve por si. Quando um texto nos escreve, permite a ilusão de que somos autores e nos guia em uma busca por nós mesmos. Conhecemos bem o último capítulo do nosso livro e a morte nos dirá se vivemos em comédia ou em tragédia. Talvez alguém imagine que leu o nosso livro e faça discursos sobre o que desconhece, em nome de uma familiaridade, por não saber que proximidade é antônimo de conhecimento.

 A história do Brasil tem sido escrita e reescrita e a última revisão é uma comédia cujo final tem chances de não ser trágico porque os redatores econômicos, políticos e religiosos estão tentando multiplicar textos que façam a história retomar caminhos mais saudáveis.

 A idade da terra chamada Brasil se perde nas cavernas da pré-história. Mas a história começa com a carta de Pero Vaz de Caminha ao rei Dom Manuel. O Tratado de Tordesilhas, mediado pelo papa, é um documento que legitima a posse de metade do mundo desconhecido para Portugal. A outra metade pertence à Espanha. Talvez possamos considerar essa a primeira grilagem da história, disfarçada nos livros, a primeira utilização da invenção de Gutemberg em larga escala. Na pré-história do Brasil, a terra pertencia a sociedades tribais, com espécimes de hábitos estranhos, como tomar banho todos os dias, andarem nus e viverem de comidas não industrializadas. Suas guerras matavam menos do que as guerras europeias e suas armas eram tão antigas que demonstravam a ignorância de seus guerreiros. Viviam da caça e da pesca e em nenhuma de suas muitas línguas existia a expressão idiomática “desequilíbrio ecológico”. Demonstravam respeito excessivo para os seus anciãos e até os antepassados participavam de seu convívio, Os que haviam passado para o outro lado davam sugestões nas reuniões do conselho, recebiam o alimento diário com gratidão e sugeriam estratégias de combates a invasores. Os portugueses vieram trazer a civilização para que a barbárie fosse erradicada e trouxeram colonos para ensinar os nativos, pelo exemplo ou pela força,  a vestirem roupas, a atualizarem o cardápio e principalmente a simplificar a religião. Diante da abundância de deuses tribais, o cristianismo era uma religião de um deus só: O Pai, o Filho, o Espírito Santo, a Virgem Maria e o santo de cada dia, capazes de curar todo tipo de doença e de garantir um lugar no purgatório, porque o céu estava todo ocupado com os habitantes de além-mar. Para escapar do inferno bastava se batizar, assistir missa, confessar pecado e pagar a penitência prescrita.

 A carta de Pero Vaz de Caminha pode ser considerada o documento que inaugura o programa de colonização, o qual ainda não conseguiu ser aplicado totalmente, escrito em estilo elegante, com os elogios de praxe a El-Rei e com o pedido de emprego para um amigo. Talvez isso explique porque o programa de colonização ainda se arrasta. Todo mundo sabe que os amigos são ótimos para garantir que as coisas não aconteçam. Os colonizadores transformaram Pindorama em um novo mundo, trazendo para a nova Terra de Santa Cruz roupa, queijo, gripe e gonorreia. Cartas e bilhetes ainda são os documentos mais importantes nessa terra em que se plantando tudo dá. Mais importantes do que livros. Os dois principais livros dos novos tempos, a Bíblia e a Constituição, de vez em quando são rasgados por bilhetes imperativos ou por cartas amigáveis.

Não é a primeira vez que experimentamos tempos difíceis, mas temos de admitir que a tentativa de rasgar Bíblia e Constituição tem ganhado muita força nesse novo milênio. A democracia burguesa e liberal, com todas as suas contradições, pode ser vista nesses momentos como uma das importações inevitáveis. Nunca tivemos muito tempo de experimentar qualquer tipo de democracia, mas depois de tanto tumulto governamental, a maioria do nosso povo aceita uma democracia liberal insuficiente, mesmo que nossas instituições sejam fracas. A frente ampla que reúne dinossauros e monstros marinhos é o abrigo de uma esperança que tenta saltitar em um terreno cheio de armadilhas. Nesse espaço, os discursos que defendem os procedimentos judiciais, as negociações e o respeito à nossa carta magna fortalecem a resistência. No espaço evangélico, a tentativa de se rasgar a Bíblia tem sido feita até com versículos bíblicos, mas muitos estamos resistindo. Libertar a Bíblia de uma hermenêutica inconsequente e de um uso antidemocrático é tarefa nossa.

Recife, 06 de fevereiro de 2023. 

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