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Marcos Monteiro
Ele veio novamente, o pó, e com a insistência de sempre
ocupou os lugares de onde o expulsei ontem, munido de pá e vassoura.
Discretamente, em todos os lugares impossíveis, alojou-se novamente com aquele
risinho irônico que qualquer pó carrega. E recomecei a atividade diária de
expulsar um resíduo irredutível que virá novamente amanhã, ritual mútuo que dá
algum sentido à nossa relação.
O que imagina o pó inútil quando o terror da vassoura desce
sobre si? Havia um soldado pago por Alexandre, o Grande, para todo dia repetir
solenemente diante do poder: “Lembra-te, ó Alexandre, que és pó e ao pó
retornarás”. O que imaginava o soldado quando a ordem do imperador descia sobre
a sua vida e lhe dava a tarefa inútil de lembrar a inutilidade da grandeza
humana?
A missão de Alexandre era conquistar o mundo, e ninguém sabe
quem lhe deu essa ridícula missão. A missão do soldado era obedecer ordens
ridículas e a missão do pó é rir do ridículo de todas e todos nós. Ornamentados
com vestes imperiais, calçados de coturnos ou mal cobertos de andrajos, somos
todos ridículos, caricaturas dos humanos que mais desprezamos. Então, seremos
sempre mais saudáveis quando aprendermos com Sócrates a rir de nós mesmos.
Quando em suas peças cômicas, Aristófanes ridicularizava Sócrates, considerado
pelo oráculo o mais sábio de todos os humanos, este era o expectador que mais
ria, porque ser sábio é aprender a rir de si mesmo.
Ser humano é assumir o pó que somos, em diferentes
caminhos existenciais, em diversos momentos estruturais, mas há também um
lado luminoso de nossa polvilhidade.
Somos do mesmo pó das estrelas, teimosos pozinhos cósmicos,
obstinados em brilhar no compasso do sol ou no ritmo dos astros. Quando a
arrogância das vassouras e a truculência dos coturnos políticos, econômicos, jurídicos
e religiosos, querem nos reduzir a pó, sem terra, sem teto, sem prazer e sem
direitos, resistimos e insistimos em ocupar todos os espaços, pela lógica do pó
estelar.
Foi instalada a Era do Coronavírus e estamos na Idade do
Bolsonauro. Micro e macrorganismos se dedicam a pulverizar nossa saúde, mas
resistiremos; a degradar os nossos salários, mas os enfrentaremos; a fragmentar
a nossa existência, mas lutaremos. Quando essa Idade passar e outra Era chegar,
teremos finalmente a oportunidade de perceber que quanto mais pó eles tentaram
produzir, mais aprendemos a resplandecer, como pó primordial, partículas do
Universo.
Gosto da ideia de ser pó que insiste e resiste, incomoda.
ResponderExcluirMaravilha esta coisa de ser pó.Estelar!!! Perfeito. Assim me sinto. Assim sou.
ResponderExcluirMaravilha!
ResponderExcluirAmém!
ResponderExcluirQue maravilha! Inspirador demais!
ResponderExcluirÉ grato, constrangedor, misterioso saber que somos pó, resto, reciclagem de estrelas. Bem colocado por você:infelizmente alguns optaram por continuar sendo resto, seja no micro ou no macro espaço. Ainda bem que há as outras possibilidades de fazer brilhar luzes estelares, mais luz e menos poeira. Obrigada MM, por esse partilhar
ResponderExcluirÉ bom lembrarmos que somos pó ; só assim venceremos quando aprendermos a sermos mansos e humildes de coração
ResponderExcluirFiquei paralisado, maravilhado, encantado e agradecido por esse lindo presente intelectual!
ResponderExcluirO texto é tão grandioso quanto o próprio autor e o pó estelar utilizado na construção!
É de se esperar que de tão rica fonte só brote coisas assim!
Meu caro amigo, eu já cansei de elogiar seus textos, e no entanto, a cada novo texto, vem-me a irressistível vontade de elogiar novamente.
ResponderExcluirGrato pelo maravilhoso ensaio.
Walter Macedo