sábado, 16 de fevereiro de 2019

CONVERSAR COM CÁGADOS


Marcos Monteiro

Os tempos estão difíceis e para aprender a ser cristão é preciso conversar com cágados. Deixe eu tentar explicar melhor. Vivemos esses momentos em que para melhor ser cristão é preciso detestar os cristãos e recusar terminantemente conversar com cristãos, converse com cágados. Isso estou aprendendo humildemente com o meu amigo Walter, Bambam. Ele tem um cágado com quem vive conversando e, se sua esposa chama isso de solidão, estou propenso a chamar de filosofia e com o desafio de transformar em teologia, talvez a “teologia do jabuti”.

Em uma palestra do teólogo José Comblin, ouvi surpreso ele sugerir que houve um tempo em que a Igreja estava tão mal que o Espírito Santo inspirou um grupo de ateus para combatê-la, tentando melhorar. Também, o filósofo Kierkegaard, o “poeta que desejava ser cristão”, na expressão do pastor e professor Merval Rosa, acreditava que a única maneira de ser cristão era se afastar das igrejas. Do mesmo modo, o jovem teólogo e pastor, combatente do nazismo, Dietrich Bonhoeffer, defendia que para ser realmente cristão era preciso viver como se Deus não existisse, crítica à inércia cristã diante do discurso hitlerista, convite à maioridade de um cristianismo que insiste numa crédula infantilidade.

Pois bem, esses e outros, poderiam nos ajudar a formular a teologia do jabuti, a conversar com cágados. Lembro do romance Quarup, de Antonio Callado, em que um personagem nos propõe a organizar a nossa história, através das fábulas populares do jabuti, em sua luta para escapar das armadilhas da onça, da raposa, ou de outros, defendendo sua fruta típica, o taperebá. Uma igreja brasileira “colonizada, sempre se colonizando”, continua abençoando o colonizador e sagrando suas fórmulas políticas e econômicas. Como bons jabutis precisamos aprender a utilizar nossa couraça e inventar truques para confundir a destreza e voracidade de predadores.

Walter, Bambam, cansou de tentar conversar com cristãos e argumentar contra essa sua tendência misógina, homofóbica, racista, legalista, capitalista, narcisista, arrogante e triunfalista; papagaios domesticados pelos colonizadores, capazes de repetir os seus discursos, sem nenhuma capacidade crítica e sem nenhuma vontade de sair do conforto dogmático. Quando adolescente, Walter praticava saltos ornamentais e, por causa disso, recebeu o apelido de Bambam, a criança dos Flintestones de força descomunal. Com muito gosto pela leitura e muito senso de humor, lembro de um episódio em que foi cobrar um pênalti, com uma técnica nada sutil. Fez carreira e soltou a bomba, mirando na cabeça do goleiro que se abaixou. Era bom goleiro, mas não era doido: gol.

Olavo Bilac seria capaz de oferecer para Walter um poema mais ou menos assim: “Ora, direis, conversar com cágados, certo perdeste o senso”, mas bom senso é o que não falta nas conversas de Bambam. Gosta de ler, de escrever e de conversar, mas esse último às vezes é cansativo, confessa, e com cristãos é impossível. Gosto de conversar com ele, mas sou cristão, embora meio jabuti, disposto o tempo toda a caminhar até Aracaju, nesse passo tartarugal, para colecionar citações, histórias e argumentos pitorescos do seu inesgotável bom humor. Chegando lá, preciso da coragem de levantar a cabeça da carapaça, para ouvir mais atento, com certo receio de levar uma bolada.

Uma teologia do jabuti teria de ser da prioridade da graça e da misericórdia sobre leis e dogmas, e recitaria um versículo mais ou menos assim: “Ainda que eu fale a língua dos anjos e dos cágados, se não tiver amor será ruído inútil, barulho redundante”. Porque é disso que versa a vida e que alimenta a nossa conversa de todo o dia, as aventuras, as peripécias e as responsabilidades do amor. Por amor somos capazes de cruzar fronteiras, inventar empreendimentos e pintar pássaros e peixes. E é em nome do amor e da misericórdia que não estamos conseguindo dialogar com os cristãos, preferimos os cágados.

Maceió, 15 de fevereiro de 2019.

12 comentários:

  1. Lindo e verdadeiro esse artigo meu amigo Marco Monteiro.

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  2. Avante a teologia do cágado!! Lindo e sensível texto, Marcos. Agradecida pelo "alimento" do caminho!!

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Ainda bem que eles existem e nos escutam: os cágados! Valeu Marcos!

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  5. Olá Marcos. Muito bom o texto.voce realmente é uma fonte de boas aguas.Realmente os cristãos estão em uma mutação perversa, se afastando do essencial. Abraços.

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  6. Que maravilha de Texto Marcos. Filosófico, inquietante, estimulante, e libertador. Estou feliz em ter lido.

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  7. Ultimamente tenho preferido meditar, já que eu não tenho um cágado, talvez seja essa a minha forma de praticar a teologia do jabuti, na tentativa de poder conversar com cristãos.

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  8. Marcos, seu olhar poético é encantador. Continue a poetizar. Sempre!
    Abraços.

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  9. Em tempos de barulho infernal, esse texto nos leva a refletir e mudar nossa forma de ouvir e de conversar. Muito proveitoso para mim.

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  10. É bem mais fácil conversar com cagados,tem um casal aqui em casa, mas o grande desafio pra mim que procuro vencer é conversar com certos cristãos bolsominios...

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  11. Marcos,

    Seu texto contribui para entender a atual realidade da Igreja no Brasil. À minha maneira leiga, já dialoguei com você a respeito disso. Prefiro conversar com cristãos como você e seus amigos, que utilizam tal termo (cristãos) não para julgar e agredir os outros, mas a partir da acepção verdadeira: amor, amor, amor!

    Quando me falta a oportunidade da aprazível companhia de cristãos como vocês, também prefiro conversar com cágados.

    Abraços e parabéns pelo texto!

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