sábado, 9 de novembro de 2013

OS FIOS DA NOSSA SOCIEDADE

Sol poente -Tarsila do Amaral


*Marcos Monteiro

Esse é um texto sobre outro texto. A mesma metáfora caminhando em duas direções paralelas, se afastando e se aproximando. Um tecer linguístico que tenta entender o tecido social brasileiro em sua construção histórica e constituição atual.

Há pouco mais de quinhentos anos, no cenário exuberante de nosso solo, as parcas europeias tentaram tecer os fios do nosso nascimento, vida e morte, destinos traçados pela invasão de arcabuzes que foram tingindo de vermelho o nosso verde, para levar para lá o pau brasil cor de brasa e o açúcar branco da verde cana. Isso foi só o começo de um desenho de colonização que roubava as nossas cores e nos branqueava a pele.

Mas todo um continente transplantado em levas de escravos nos doou um coração negro que junto às nossas vísceras indígenas entreteceram outro destino, escritores de entrelinhas e pintores de quadros escondidos em tabas e quilombos espalhados pelas matas. Uma resistência cultural foi sendo entrançada, os deuses e entidades dos nossos subterrâneos enfrentando criativamente o deus branco colonizador e opressor, entre danças e atabaques.

Na frente da ofensiva colonizadora, o macho branco ditava o texto de um patriarcado onipotente e castrador. Porém, as rendeiras negras e mestiças, com os seus bilros atrevidos e suas mãos ágeis, teciam e multiplicavam verdadeiros matriarcados clandestinos, peças artesanais em que o bordado social trazia alternativas ao gibão de couro e às botas com esporas que rilhavam a barriga do animal civilizador.

Desse modo, chegou ao Brasil um esboço de democracia que ainda tentamos concluir. Por várias vezes foi rasgado; da última vez, tempos tão recentes ainda, por uma ditadura militar apoiada por um grande grupo de civis desinteressados de textos constituintes e de igualdades políticas. Elio Gaspari nos descreve um ditador que escreve palavras cruzadas e o texto do AI5 na mesma manhã. Esse documento símbolo de um autoritarismo despótico e torturador.

De uns tempos para cá estamos tentando nos bastidores da nossa história recriar o tecido social. Lembro de quando criança recebia um bastidor para bordar alguns pontos. Quando conseguia um arremedo de beleza em algum lugar, virava o bastidor e descobria um avesso tão desalinhado que me desalinhava qualquer esperança de talento artístico. A sociedade brasileira ainda me parece um avesso quase sem direito.

A sua beleza é apenas a beleza surrealista do caos de contrastes em que alguns pontilhados e alguns fios dourados sugerem a esperança. Os farrapos de justiça no manto da lei não conseguem nos proteger dos ventos frios da contravenção e da corrupção. Diante das tensões, o tecido social vive sempre esgarçado, constituindo-se os direitos básicos, mobilidade, saúde, educação, moradia, grotescos remendos aplicados por tecelões sem talento.

A tarefa de realizarmos conjuntamente um novo bordado social é desafio que levará tempo. Fazer do texto da constituição literatura popular passa por regulamentações que não se sabe quando acontecerão. Considerada uma das constituições mais avançadas de todo o mundo, artigos dos mais necessários são na verdade artigos de luxo, fora do alcance da maioria.

O redesenhar do nosso espaço, por exemplo, não é interesse apenas do povo do campo, dos índios e dos negros. Terras para pequenos e médios agricultores, aldeias indígenas e quilombolas são necessidades do planeta, distribuição de focos de resistência que tornem mais lento o avanço predatório do capital. A regulamentação dos juros, igualmente, é necessidade de um povo cada vez mais endividado em suas contas domésticas.

Precisamos, portanto, todas e todos, redescobrirmos nossa vocação artesanal e tentarmos com toda nossa criatividade sermos tecelãs e tecelões da história, alfaiates e costureiras de um tecido social mais belo e mais resistente.

 *Marcos Monteiro é assessor de pesquisa do CEPESC. Mestre em Filosofia, faz parte do colégio pastoral da Comunidade de Jesus em Feira de Santana, BA e do grupo de pastores da Primeira Igreja Batista em Bultrins, Olinda, PE. Também faz parte da diretoria da Aliança de Batistas do Brasil e é membro da Fraternidade Teológica Latino-Americana do Brasil.
CEPESC – Centro de Pesquisa, Estudos e Serviço Cristão. E-mail cepesc@bol.com.br, site www.cepesc.com.
Fone: (71) 3266-0055.

Um comentário:

  1. Texto bem acabado, ou diria melhor mal acabado? Gostei muito da reflexão, estou começando a entender os textos de um filosofo. Por que será? Até mais...

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