quinta-feira, 30 de setembro de 2010

OBEDIÊNCIA, CASTIDADE E POBREZA

As reformas dos séculos XVI e XVII precisam ser entendidas também no contraponto do movimento monástico. Mesmo vivendo períodos cíclicos de vitalidade e decadência, o monasticismo teria sido o que de melhor fora produzido pela cristandade medieval, estabelecendo-se como espécie de termômetro da Igreja. Quando florescia, a Igreja melhorava, quando se corrompia, toda a igreja, de modo geral, entrava em período de crise. As reformas cluniense e cisterciense e os movimentos franciscano e dominicano, por exemplo, são momentos de revigoração da igreja que alcançam toda a sociedade medieval. No movimento de São Francisco de Assis, a ordem terceira, especialmente, teria sido responsável por uma restauração de princípios que atinge toda a sociedade medieval durante dois ou três séculos, amenizando mazelas e seqüelas de um feudalismo aristocrata e de imperialismos complexos.

Sendo Lutero monge agostiniano, a sua reforma, de início tímida, vai atingindo o coração da igreja católica romana, estabelecendo uma polarização gradativa, em que os princípios monásticos se colocarão cada vez mais distantes das vivências protestantes. Isso se torna mais importante ainda, lembrando-se que o monasticismo atingira então dimensões imensuráveis. Praticamente, cada cidade medieval tinha um ou mais mosteiros em seus arredores, fontes de influência positiva ou negativa, dependendo das circunstâncias. Os votos de pobreza, obediência e castidade, pilares do monasticismo haviam-se tornado de certa forma pilares da própria igreja, sendo impossível uma reforma que não atingisse esses votos. Também aquilo que seria desejo, propósito e estilo de vida teriam sido transformadas em virtudes em si mesmas, causando problemas teológicos, eclesiásticos e sociais de diversos teores.

Opondo-se à pobreza como virtude em si mesma, o que seria uma atitude teológica que conduziria a diversas libertações, o protestantismo seria levado a uma aliança cada vez mais forte com o capitalismo nascente, tornando-se riqueza e prosperidade sinal de bênção de Deus e critério de verificação de eleição predestinada. Na esteira disso, uma sacralização do trabalho em si, irá substituindo a santidade da pobreza, consolidando relações trabalhistas existentes, colocando sob suspeita ócio e lazer.

A questão dos votos de castidade acentua uma espécie de desconfiança eterna entre religião e sexualidade muito presente no cristianismo desde a sua origem. Durante as reformas, a sexualidade foi revista e repensada, sendo o casamento de padres, monges e freiras, o primeiro resultado alvissareiro, permissão de gozos terrenos não experimentados por muitos. Dois momentos posteriores ilustram o momento vivido. O primeiro, o divórcio de Henrique VIII, não autorizado pelo papa, mas autorizado por consultas teológicas vindas das universidades, sob influência dos novos tempos. Podemos constatar que a Reforma Anglicana foi deflagrada por uma questão de ordem sexual necessitada de nova teologia e de nova igreja para satisfazer os desejos de um monarca. O segundo momento, foi a consulta de Felipe de Hesse sobre a legitimidade da poligamia, para resolver seus assuntos particulares, que teve a aquiescência, pelo menos inicial, da teologia de Lutero.

Os votos de obediência nos levam à questão central da Reforma, o problema da autoridade. Contra a autoridade absoluta do papa, o protestantismo terá que administrar um sistema de autoridades relativas, com pouco espaço para autoridades não hierárquicas, coletivas, populares, muito menos sistemas democráticos, em que a mutualidade e a alternância se apresentam de modo mais forte. É dentro dessa administração de um conceito de autoridade hierárquica que Lutero praticamente autoriza a morte de camponeses sediciosos, chegando a santificar de antemão o massacre efetuado pelos senhores feudais, através de seu famoso panfleto “Contra a corja de camponeses assassinos e ladrões” em que afirmava previamente que prestava um serviço a Deus quem matasse um camponês rebelado, o que pode ser lido como uma espécie de carta de “indulgência protestante”.

Um comentário:

  1. Não é à-toa que nós protestantes temos uma tendência a desqualificar quaisquer manifestações de cunho monástico ou de características eremitas, classificadas como modelos católicos de cristianismo... Um absurdo, diante do poder renovador da fé que estes movimentos expressaram, como vc acaba de mostrar.
    Em poucas palavras, Marcos, vc nos apresenta um reflexo significativo das experiências protestantes.

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