sábado, 21 de agosto de 2010

Ali onde a coruja dorme


Anoitecendo, campinho de futebol de subúrbio de cidade pequena, e eu vejo, vejo mesmo, uma coruja pousada, na quina de junção entre trave e travessão, aparentemente dormindo. Mais tarde, em casa, transmissão pela televisão de jogo de terceira, quarta, não sei que divisão, e desconhecido jogador, adolescente acostumado a sonhar com os pés, bate a falta, próxima à grande área, e a bola entra exatamente ali, ali “onde a coruja dorme”, ou “no lugar onde o pássaro faz o ninho” e a glória do futebol explode em gol e alegria e linguagem poética.

Os locutores de futebol também são artistas, parte do espetáculo, jogadores de palavras e expressões que nos desafiam a desequilibrar o pêndulo da balança da eterna discussão se o futebol é força ou é arte para o lado da beleza. Nas frases-jargão, bordões que repetem amiúde, a descrição do futebol-ecológico, pródigo de lances criativos, exuberante como a vida, capaz de suspender, pelo menos por noventa minutos, a monotonia de um cotidiano previsível demais.

Esse desconhecido e hábil jogador adolescente inscreve-se na paisagem como criador ou encantador de pássaros. Não tem o nome de Didi, o jardineiro da “folha seca”, nem de Ronaldinho Gaúcho, o aguadeiro que distribui “banhos de cuia”, nem de Garrincha, o passarinho do drible inevitável, mas, nos seus pés, a bola se torna pássaro, pintassilgo, bem-te-vi, curió, sabiá, e voa e canta, e canta e voa, atenta aos desejos de seu parceiro de jogo.

Porque, como acontece no hipismo entre jóquei e cavalo, no futebol-ecológico, o craque e a bola formam um conjunto, companheiros de criação e de existência, sussurrando segredos um para o outro e improvisando jogadas desconcertantes. No lance da falta, a bola foi passarinho voando leve, descreveu um círculo que iludiu a habilidade dos defensores e, pássaro-pelota, se aninhou no ângulo direito da trave, ali onde a coruja dorme. Ser vivo-alado, tem autonomia de vôo, os pés do jogador-parceiro não a chuta de verdade, apenas dá levemente o toque-sinal para que o pássaro-bola inicie o vôo e assuma o espetáculo.

No futebol-ecológico, o craque-passarinheiro proíbe a violência e silencia a rivalidade entre as torcidas, elevando o jogo acima do resultado, promovendo o espetáculo da vida, que convida ao espetáculo do amor. A força bruta, o pontapé, a bola maltratada, ameaçam o equilíbrio de um sistema ecológico, cuja finalidade maior é extrair doses de alegria de nossa tendência à frustração e revelar para nós mesmos as possibilidades de encantamento e re-encatamento que o tempo não conseguiu destruir.

Então, ultrapassando os limites do campo de futebol, o craque-passarinheiro e a bola-pássaro, estabelecem a ética da transgressão, subvertendo, pelos caminhos da estética, um sistema que nos limita e nos proíbe, através de suas eternas instituições, reguladoras, proibidoras e castradoras. Naquele momento, junto com a bola, a nossa esperança estabelece vôos impossíveis e, para desespero dos adversários-instituições, se instala mansamente “ali onde a coruja dorme”.

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