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NA
ERA DO CORONAVÍRUS
Caminhando entre
o sol e a lua
Marcos
Monteiro
Antigamente, muito
antigamente, o tempo teria sido marcado poeticamente, ou fenômenos cósmicos, ou
sociais, ou míticos. No dia em que a lua correu e alcançou o sol, ou no ano em
que a primeira mangueira surgiu repleta de frutos, ou na manhã em que Potira
não viu Itagibá voltar. Pois bem, ontem foi o dia em que dei um passeio pequeno
pela cidade grande, na Era do Coronavírus, modo épico de nomear tempos
indefinidos, meio tragédia, meio comédia metida a farsa.
O sol de meio dia
nos acompanhou por uma peregrinação econômica, comprar comida e fazer
transferências bancárias, e descobrir que o mundo pode mudar, mas as filas
continuam, com algumas mudanças. Há mais idosos nas filas e o medo que tínhamos
de mascarados, agora é de quem não usa, tempos em que uma mulher de burca nos
deixa extasiados e em paz. Porque o medo é a emoção do momento, sinto medo de
andar, de parar, de tossir, de coçar, de doer, de cansar, de respirar. E depois
de tudo, o medo de não ter sintoma nenhum, do perigo de ser assintomático.
Pois bem, Eu e
Zailda, minha filha, nos preparamos a manhã inteira para dar a nossa saída,
meio preocupados, meio empolgados. Entendia que precisava me disfarçar o mais
possível de não-idoso e passei um tempão tirando a barba branca, meio grande,
meio irregular, meio ridícula, mas eu gosto. Deixar a barba crescer foi uma
decisão tardia, pelos fins dos cinquenta e inícios dos meus sessenta anos, e
foi um alívio assumir um rosto com pelos, dispensar os estojos e cremes de
barbear de cada dia. Disse-me um amigo que desisti de tentar ser talentoso e
optei por ser exótico. Em casa, passeamos pelo celular e computador e depois do
almoço saímos.
As ruas e as poucas
e pequenas lojas abertas ainda eram razoáveis, mas o grande supermercado, com o
seu ar-condicionado potente, garantindo o prolongamento da vida de vírus e
bactérias, e a grande quantidade dos macro-organismos da espécie humana, talvez
em extinção, era quase aterrorizante. Usar máscaras e respeitar distâncias não
estão ainda acontecendo de modo contundente, hábitos construídos por tanto
tempo não são fáceis de serem desinstalados de repente. Estamos na estranha era
em que ama mais o próximo quem mais se afasta. E nós os latinos, famosos por se
esfregar e abraçar, talvez tenhamos de adotar o costume oriental da leve
inclinação à distância. Claro que no confinamento de casa, manter distância é
um dilema que em alguns momentos não dá. Um casal amigo está tentando aprender
a transar a um metro e meio de distância, mas confessam que ainda não
conseguiram. Por enquanto, usam álcool gel nas partes.
Com boletos e
cartões bancários nos bolsos, encontrei uma lotérica com filas razoáveis, três
gerais e duas preferenciais, superlotadas de mascaradas e desmascarados. Não
tive coragem de optar e assumi meu lugar na fila de idosos, mesmo sabendo que
essa história de fila preferencial foi estratégia de discriminação e, com pouca
fila pra tanto idoso, o fluxo será sempre mais devagar. Fiquei à distância de
três metros para não assustar a humanidade e demorou, mas fui atendido. Então
voltei pra casa, feliz, com a sensação de ter feito mais exercício do que o meu
cardiologista recomenda. Minha filha me mostrou a lua na janela, grande e
linda. Registrei nas minhas anotações: Na Era do Coronavírus, no dia da
superlua.
Recife, 08 de abril
de 2020.
Álcool gel nas partes!kkkkk que loucura!
ResponderExcluirMuito divertido o texto!
Excelente! "Álcool gel nas partes"... deve arder mais do que o fogo dos apaixonados, kkkkk. Que texto mais gostoso de ler!
ResponderExcluirLeitura gostosíssima, trágica e engraçada, tudo ao mesmo tempo. Enfim: na vida "recivilizada" pelo Corona, entre a opção de desfazer os laços e morrer, há a opção de não. Ou não....
ResponderExcluirCuidado com essas saídas, querido amigo talentoso!
ResponderExcluirDiria, pra entrar na sua, que você se supera a cada textículo!
ResponderExcluirQuerido amigo! Texto maravilhoso. Minha imaginação vai longe quando leio seus textos, imagino cada cenário e ação. Um texto nescessário, lindo e de uma lógica afetuosa.
ResponderExcluirEsse texto nos coloca no centro da narrativa e nos faz sentir como verdadeiro protagonista e me fez lembrar quando aos 15 anos lí o livro Capitães de Areia de Jorge Amado que me fez sentir toda a força e esplendor físico de Pedro Bala.
ResponderExcluirSempre carregado de sentidos e de uma razão cordial, sensível. Aprendo Muito, à distância...
ResponderExcluirGosto desse olhar encantado no cotidiano
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