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Marcos
Monteiro
Nesses tempos
loucos, precisava chegar na Vila Maravila e, aproveitando o primeiro descuido,
fugi e fui me esgueirando por ruas, becos, pontes, morros, até descer a gruta e
chegar. Encontrei no trajeto olhares hostis, escutei palavrões, constatando que
estou no grupo de risco (para os outros), perigo de contaminação da humanidade.
Na entrada, a turma da pesada me cercou até chegar Paranísio que depois de uma
longa conversa me convidou para a sua casa.
Fiquei surpreso com
a casa cheia de gente. A morada de Paranísio e Valdelice é um galpão bem
grande, onde tudo acontece inclusive nada, com oito pequenas suítes. Ocupei uma
e fiquei impressionado com cerca de trinta pessoas no galpão, junto com suas
tralhas e colchonetes enrolados. Valdelice me explicou que faziam parte da
população de rua dos arredores e foram convidados a enfrentarem juntos esse
momento absurdo que o mundo vivia. Ela chamava isso de “convivialidade
profilática”, uma alternativa ao “isolamento social” desse globo capitalista.
Paraníso acrescentou que como “socialista de vergonha” tinha vergonha de viver isolado,
tipo ermitão medieval, com medo da vida ou da morte.
A decisão pela
“convivialidade profilática” tinha sido uma decisão coletiva, como as decisões
mais sérias da Vila. Quase um mês antes da “confusão global”, Doutor Rildo
conversou com Paranísio sobre os perigos de uma pandemia. Aí Paranísio conversou com Mãe Silícia que
conversou com Zé Cambraia que conversou com Seu Honório que conversou com
Cocada e foi todo mundo conversando o tempo todo, discutindo tudo enquanto a
vida continuava. Paranísio chama isso de “assembleia de índio” e quando chega a
assembleia final está tudo mastigadinho, todo mundo tirando as dúvidas de todo
mundo, Doutor Rildo e a esposa Maria das Graças, opinando como especialistas em
saúde e então se estabeleceu na Vila, antes do país isolar tudo e todos, a
comunidade da saúde.
Então, estou por
aqui, na Vila Maravila, não sei por quanto tempo, cuidando do corpo, do coração
e do olhar e vou explicando porque.
Paranísio é ateu e
Valdelice é filha de santo. Então, como pastor evangélico, nessa comunidade
quase socialista, eu me sinto acolhido e privilegiado, até por discutir textos
da Bíblia, independente da religião de cada. E um pedaço do Sermão do Monte
está há dias martelando na minha cabeça. Convivo há muito tempo com as
mensagens do Sermão do Monte, como se fossem bailarinas do evangelho que me
convidam a dançar. O que me encanta é que sempre há algum passo novo nessa
dança. Vou tentar resumir um pouco dos caminhos da minha cabeça, tentando
entender o que ia pela cabeça de Jesus e dos seus primeiros seguidores.
Em todo o ensino e
vivência de Jesus, o Pai e o Reino, são duas realidades constantes. Chamar Javé
de Pai, no carinhoso coloquial “Abba” podia ser considerada atrevida heresia, e
entender esse misterioso Pai de Jesus tem sido complicada e inútil tarefa de
minha existência. A questão sobre Deus, não-deus, o sagrado, o divino,
pessoalidade, não pessoalidade de Deus, santos, deusas, deuses, infinita
pergunta, tem a candente resposta de “Pai”, modo infantil de não responder,
vocativo que apenas exclama, sem se preocupar com grandes questões. Leonardo
Boff diz que Jesus aprendeu sobre a paternidade de Deus no convívio com seu
pai, José. Presentes ou implícitos em todos os textos do evangelho, o Pai e o
Reino também são a moldura maior do Sermão do Monte. Mas nesse pedaço
específico, gosto de realçar o corpo e dois dos seus componentes, o coração e o
olhar.
O Sermão
do Monte inteiro se encontra nos capítulos 5, 6 e 7 do evangelho de Mateus e o
pedaço que eu tenho ruminado é o texto
que vai do capítulo 6, versículo 9 até o 34. Lá pelo meio, os versos de
Mateus 6, 21-22 vão dizendo assim para mim:
Pois
onde estiver o seu tesouro, aí também estará o seu coração.
Os
olhos são a candeia do corpo. Se os seus olhos forem bons, todo o seu corpo
será cheio de luz.
Um coração
descompassado e olhos brilhando é descrição para alguém feliz e esse texto
começa dizendo para não concentrar o coração no dinheiro, não brilhar os olhos
para a sedução do consumo. O grande adversário de Jesus era o deus Mamom, deus
da riqueza, equivalente ao deus Capital que a Vila Maravila enfrenta o mais
possível e todas e todos precisamos, talvez, reeducar o olhar.
Os tempos de Jesus
não eram fáceis, com proliferação de muita pobreza e muita doença, e isso era
um convite à angústia e preocupação. Um olhar iluminado, no entanto, não olha
para a escassez, de comidas ou roupas, mas olha para a liberdade dos pássaros e
para a exuberância das flores e consegue enxergar o cuidado do Pai. Nos versos
31 e 32 do capítulo 6, temos um convite a não gastar tanta energia com esse
tipo de preocupação.
“Portanto, não se preocupem,
dizendo: 'Que vamos comer?' ou 'Que vamos beber?' ou 'Que vamos vestir?'
Pois
os pagãos é que correm atrás dessas coisas; mas o Pai celestial sabe que vocês
precisam delas.”
A energia que a ansiedade pela falta de comida, bebida, roupa,
dinheiro, consome é um desperdício inútil, o qual não acrescenta nenhum
centímetro de vida ao nosso tempo. A vida é maior do que o alimento e o corpo é
mais importante do que a aparência. Se tirarmos o olhar do que não temos e
olhar ao redor, poderemos ver sinais do cuidado do Pai em todos os lugares,
pássaros voando, flores brotando, gente se amando, às vezes em lugares
inesperados. Mas para que não tornemos essa contemplação do Pai em
religiosidade escapista é preciso procurar o Reino de Deus, como diz o verso 33
do mesmo capítulo.
“Busquem, pois, em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça,
e todas essas coisas serão acrescentadas a vocês.”
Toda a energia dissipada
em preocupação estressante deve ser usada na busca do Reino de Deus, e isso é
um convite a uma nova prática. Esse Reino de Deus pode ser entendido como a
visão de Jesus de um novo mundo, oposto ao imperialismo romano e à provinciana
opressão judaica. A ideia tem uma complexa discussão, ao longo da história, mas
pensar em um mundo melhor, próximo das utopias históricas, ou até do bem-viver
do Acosta, pode nos ajudar a entender. Um mundo em que palavras como justiça,
amor e verdade, se organizam em estruturas e relações diferentes. Paranísio pensaria, com certeza, em uma Vila
Maravila socialista, uma revolução total da política, da economia e das
relações culturais e sociais, com muito mais igualdade para todas e cadas.
Chegou a hora do
almoço e eu não pude evitar de me sentir em uma ceia eucarística, em que as
mãos de Jesus eram as muitas mãos, cozinhando em muitos fogões, gente de todo
tipo, idade, religião, orientação sexual, alegria liberada, conversa que nunca
parava, diversidade de cores, sabores, assuntos, gentes. O último pedaço do
trecho que dançava na minha cabeça era de uma força incomum, o verso 34.
“Portanto,
não se preocupem com o amanhã, pois o amanhã trará as suas próprias
preocupações. Basta a cada dia o seu próprio mal.”
Combater o mal de cada dia, é
convite a uma atitude teimosa diante de uma tarefa que não parece ter fim.
Busque um mundo melhor hoje, combatendo com um olhar luminoso e um coração
inteiro, inventando e reinventando a cada dia estruturas melhores e
relacionamentos mais equânimes, diante do mal de hoje. Durma bem e quando
amanhecer lute intensamente contra o mal de amanhã. Todo dia, aqui, então,
estaremos lutado contra esse mal que acometeu a humanidade. Em “convivialidade
profilática”, tomaremos todas as medidas para evitar contágio, incluindo o
controle de acesso à comunidade, mas não abandonaremos nunca a solidariedade e
a busca por um mundo de mais justiça, mais verdade e mais amor. Por causa
disso, em plena Era do Coronavírus, os meus olhos estão brilhando.
Recife, 26 de março
de 2020.
Olá Marcos...que belíssimos textos. Tua caminhada a VilaMaravila e sua inserção/acolhida... E o Sermão do Monte? Tantas possibilidades... A insistência da vida!
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