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Segundo
seu Madeira, o melhor time de futebol de todos os tempos foi a seguinte
formação do Maravila F. C. que todos os moradores sabem de cor e salteado de tanto
ouvir seu Madeira recitar, naquele honroso e consagrado quatro dois quatro que
ninguém quer mais usar.
Terêncio, Biuzão e Magela. Loureiro e Genival.
Rubenírio e Aratunga. Roído, Rapaz, Biu do Efeito e Caçula. O técnico era
Aroeira.
Biuzão tinha fama de grosso, mas não era grosso. Era
que com a lapa de perna que tinha e com o tamanho e musculatura do tórax, era
um milagre que conseguisse dominar a bola e matar a faceira no peito. Mesmo
assim ele a dominava. É verdade que quando
resolvia partir, esquipando, resfolegando e relinchando para cima dos
adversários, o outro time tremia e até a redondinha desejava sair de perto.
Ninguém segurava. Milicunha do Ipiranga, sempre o Ipiranga, armou um toco na
maldade e Biuzão sentiu, mas Milicunha foi direto pro hospital com fratura na
tíbia e torcicolo no pescoço, tamanho foi o choque. Um tiro de Biuzão, goleiro
tinha de ter técnica para desviar, senão quebrava a mão. Se tentasse segurar,
entrava com bola e tudo, o juiz marcava o gol e expulsava o besta pela loucura.
Biuzão só não fazia mais gol, porque delicado e
educado como ninguém, evitava o máximo as arrancadas ou os tiros certeiros em
direção ao gol, como se pedisse desculpa pela força descomunal de que dispunha.
O técnico Aroeira, desesperado por dispor e não dispor desse recurso colossal, vivia
tentando descobrir meios de fazer o Biuzão perder a enorme paciência (bem maior
ainda do que os seus bíceps, tríceps ou quadríceps - sei lá),
único caminho de levar Biuzão a fazer irresistíveis gols. Roído, a mando
do técnico, só conseguira uma vez. Nas
outras vezes, só conseguira mesmo fora dobrar o Biuzão (maior aficcionado de
suas brincadeiras) de tanto rir, pondo inclusive partidas em situação de
risco.
Um dia, Roído tirara uma brincadeira com Maria Odete
e finalmente despertara o ódio alucinado de Biuzão. Mas a reação não fora a
esperada arrancada em direção ao gol adversário. Biuzão partiu mesmo foi para
cima de Roído, levantou-o pelo pescoço e o Maravila F. C. somente não ficou sem
o seu luminar ponta direita porque a ira de Biuzão do mesmo modo como viera
passou subitamente. A partir daí, nem Roído nem ninguém tirou mais qualquer
tipo de brincadeira com Maria Odete.
Biuzão era um entroncado e atarracado mulato de
olhos verdes. Mas, se era musculoso, era
muito mais delicado e gentil. Pelo tamanho do bíceps (tríceps?), porém, ninguém se atrevia a pensar, quanto mais a
insinuar que era homossexual, mesmo quando ninguém o via com mulher. Naquela
época (seu Madeira teve o cuidado de contar) dezessete mocinhas de boa família
viviam suspirando pelo Biuzão que só suspirava por Maria Odete (segredo
descoberto muito depois) que não suspirava por ele nem por ninguém.
Foi nesse período que Biuzão começara as suas
famosas e irresistíveis arrancadas que quase o tornaram no grande artilheiro do
time, desbancando mesmo o consagradíssimo Biu do Efeito. Na decisão do
campeonato, contra o famoso Ipiranga, Biuzão fez quatro gols em uma partida só.
Dois de irresistíveis arrancadas, um de falta e outro de um tiro de longa
distância, cuja violência furou a rede e derrubou uma jaca de uma frutífera
jaqueira a cerca de vinte metros do campo de futebol suburbano. O resultado
final sete a cinco completa a inesquecível história do primeiro tricampeonato
do Maravila F. C. Carregado em triunfo, a alegria de Biuzão exibia lampejos de
melancolia.
Um dia, entretanto, Maria Odete tropeçou e foi
imediata e instintivamente amparada pelo tímido e musculoso abraço de Biuzão.
Ali cruzaram os olhos, as almas e as vidas tão plenamente, a ponto de Biuzão
abrir imenso sorriso que só conseguiria fechar oito meses depois, passado o
efeito da surpresa, permanecendo entretanto a face de beatífica felicidade
infinita. Maria Odete, naquele mágico instante, tornou-se para Biuzão o que
Biuzão já havia se tornado para Maria Odete, fechada assim essa equação de
primeiro, segundo, vigésimo e milionésimo grau, extinguindo-se, para desespero
do técnico Aroeira, o motivo para as frutíferas arrancadas e tiros de longa
distância de Biuzão.
Foi quando Aroeira, que técnico excepcional era
Aroeira, descobriu uma nova maneira de Biuzão fazer gol: comemoração e
homenagem.
Em sua perspicácia, Aroeira sabia que não podia
abusar e que era preciso convencer Biuzão da validade tanto da homenagem quanto
da comemoração e tudo tinha de estar relacionado com Maria Odete.
Seis meses de namoro e olhe o motivo para um gol de
comemoração; a beleza e a simplicidade de Maria Odete e eis um motivo para
outro gol. Nunca na mesma partida, mas Aroeira tornou Biuzão o artilheiro mais
regular do time. Um gol por jogo, religiosamente, para a mãe, o pai e as três
irmãs de Maria Odete ou pelo aniversário de Maria Odete, a aprovação de Maria
Odete em determinada matéria, como aplicada estudante que era, a cura de Maria
Odete de um resfriado, e haja descobrir e reinventar a cada jogo, além do
esquema tático do time, o motivo para o garantido gol de Biuzão.
A fórmula só terminou quando Biuzão resolveu
abandonar o futebol. E foi assim, sem mais nem menos, no meio de uma partida
importantíssima, depois de fazer o gol que homenageava o aniversário de um ano
do primeiro filho de Maria Odete, Biuzão saiu tranqüilamente do gramado, sem
pedir licença para ninguém, e, tomando a criança no colo e dando o braço para
Maria Odete, foram caminhar, passear, sorrir e viver a vida sem mais jogar
futebol por obrigação. Assim, do campo para a história, de noventa minutos
estruturados e concretos para o jogo mitológico da fama. Desespero de Aroeira,
saudade dos torcedores e prestígio eternizado de Biuzão que, de vez em quando,
para matar a saudade, participava de um ou outro racha.
(Esse texto se encontra no livro “Vila
Maravila: um lugar diferente e cheio de graça”. O livro pode ser adquirido em
contato com o autor ou na Livraria Nobel, Av. Maria Quitéria, 2013, Feira de
Santana – BA. Da mesma maneira você pode encontrar o segundo volume: “Vila
Maravila: gols de esperança no campo da vida”)
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