asset.zcache |
Quando Madame entrou no imenso salão, percebeu, pelo
rumor, que havia conseguido o seu intento. Propositadamente discreta em suas
roupas, contrastando com todo o mundo presente, através de uma modesta coleira,
carregava uma legítima e imponente cascavel, a qual causava uma legítima e
imponente impressão.
Inevitavelmente e sem nenhum
esforço, o estranho par, a mulher e a serpente, chamava para si todas as
atenções, entre a diversidade de bichinhos de estimação, para desespero de
Amiga que tinha a mania de inventar manias e havia inventado a última invenção
de se levar bichinhos para as concorridas reuniões da alta sociedade local. Não
é necessário dizer que nem os inúmeros poodles, chihauas, gatos
siameses, araras, sabiás, nem o divertido bicho preguiça de Amiga, se
constituíam em páreo para o inusitado pet de Madame.
O cérebro criativo de Amiga
fervia de inveja (e a inveja nos torna ainda mais criativos) sem encontrar
caminhos de reencontrar o caminho do centro das atenções. Inopinadamente se
dirige até madame e aproximando perigosamente a delicada mão da cabeça do
réptil, diz desdenhosamente que não acredita que o mesmo seja venenoso.
Provocada pela proximidade da alva palma de Amiga, a cobra crava-lhe a presa,
para susto desesperado da outra que só não morre porque prontos médicos lhe
acorrem e lhe amputam imediatamente a mão.
Sem perder o sorriso, a pose e
muito menos a oportunidade, Amiga consegue, por um breve espaço de tempo, com a
narração detalhada do episódio que lhe tornara maneta, quase atrair toda a
atenção novamente. Quase, porque, vamos e venhamos, uma socialite feita
maneta por mordida de cobra, só se torna mais importante do que a própria
cobra, por um brevíssimo, definido e localizado lapso de tempo. Passado este, a
serpente, com sua propensão mítica de fundamentar origens e antecipar
catástrofes escatológicas, cria e recria ela mesma o espaço ao seu redor,
expulsando do espaço mítico-social todos os intrusos adversários.
Mas nenhum dos presentes se
declararam ainda derrotados na guerra pelo centro das atenções e,
discretamente, saíam de cena e retornavam com girafas, leopardos, leões,
ursinhos, onças, hienas e até um elefante de porte médio, sem no entanto
ameaçar a supremacia majestosa da Madame com a sua cascavel. Amiga, então,
freneticamente invejosa e freneticamente criativa, introduziu no salão um
tamanduá bandeira, um crocodilo gigante, um ornitorrico, um legítimo canguru
australiano e um pequeno clone de um tiranossauro rex. Mas Madame e sua
serpente continuaram incólumes, perfeitamente imbatíveis diante da
contra-ofensiva simbólica proporcionada pela curiosa coalizão ecológica.
Então Amiga, maneta e impotente, perdeu
a pose, o sorriso e a linha e avançou descontrolada, entre gritos histéricos,
impropérios selvagens, uivos esganiçados, na direção da desconcertada Madame. E
diante do silêncio estupefato dos perplexos animais, a luta se generalizou
incontrolável por todo o imenso espaço do salão. Socos, pontapés, puxões de
cabelos, compridas unhas rasgando maquiadas faces, musculosos varões
impecavelmente vestidos tendo os seus tão apreciados testículos dilacerados por
finíssimos e delicados sapatos, e outras cenas tão humanas, deixavam todos os
animais em estado de paralisado estupor.
No centro do salão, entre gritos,
grunhidos, grasnados, urros e ofensas explícitas, Madame e Amiga se
engalfinhavam e trocavam toda a sorte de golpes, em uma combinação bem
pós-moderna de Yim e Yang, de masculino e feminino. Há marcas de unhas pelo
corpo de ambas e imensa mechas de cabelo das duas pelo chão. Repentinamente, a desvairada Amiga avança
enlouquecida sobre Madame e, de um só golpe, morde-lhe a jugular. Madame cai
fulminada, morta, não se sabe com certeza, de estrangulamento, sangramento ou
envenenamento. Amiga, enfurecida, maneta e desgrenhada, joga-se então na
direção de uma apavorada cascavel que, transida de pavor, dizem que corre até
hoje, alucinadamente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário