Marcos Monteiro
Foi um sábado difícil. Começou com uma chuva descontrolada,
aqui no Recife, e com algumas lágrimas controladas, por conta do áudio de
Clarisse, informando gentil e emocionada, que provavelmente Djalma partiria naquele
dia. Minha filha, quando me viu chorar, perguntou se Deus estava chorando e eu
respondi que sim. Depois, pensando melhor, concluí que a chuva era da natureza,
angústia do planeta, por um filho que partia; Deus estava alegre, sorriso
aberto, antecipando o reencontro. Mas foi um sábado aquoso.
As águas do Tororó acamparam na minha imaginação e eu queria
escrever um texto, homenagem ao meu amigo, mas os caminhos da linguagem eram
tantos e tão diversos que não consegui; e fiquei alerta, vivendo o dia e
aguardando os acontecimentos. No fim da tarde, quando a notícia da morte
chegou, as comportas da minha alma se abriram e chorei como nunca: o sábado
tornou-se líquido. E li tanta coisa bela, ouvi tantos depoimentos fortes,
troquei mensagens rápidas com tantos amigos comuns, com uma dor tão intensa,
que percebi que pensava que Djalma era eterno, não esperava que se fosse, não
agora, não sem podermos nos encontrar novamente, em algum lugar da cidade de
São Salvador, Bahia.
Lembrei dos encontros mais recentes. Uma visita ao hospital,
no início do diagnóstico do câncer agressivo, uns tempos depois no apartamento de
Maurício, quando começava a convalescer, e o mais recente de todos, quase uma
semana juntos (precisava revisar um texto que ele estava publicando) no lugar
sagrado do Tororó, sede do CEPESC, da Igreja Evangélica de Antioquia,
oficialmente, e de tantas instituições, organizações, movimentos, encontros,
provisória ou informalmente. Mas também era um dos refúgios de Djalma, o mais
sagrados de todos, com espaço para dormir, comer e acolher pessoas. Nesse
último momento, estava leve e livre, com a vivacidade de sempre, compromissos
que não sei como conseguia dar conta, energia e alegria funcionando com toda a
carga.
Djalma tinha uma geografia existencial bem própria, com
hierarquias ainda a serem deslindadas pelos historiadores que se debruçarão
sobre a sua trajetória. Salvador era o berço da humanidade, e quando me chamava
para aparecer, repetia sempre: “Venha tomar um banho de civilização”. Jequié
era a fonte de sua origem, craque de futebol que se transforma em pastor
evangélico, mas Canudos era a cidade síntese, modelo de como o mundo pode se
tornar lugar da “Utopia Religiosa”, título do livro que não terminou de
escrever. Caminhava com Canudos na valise da alma, e quando esteve em Paris,
com Olusivone, tenho certeza de que olhava para a Torre Eiffel, pensando nas
míticas “ribanceiras de cuscuz com rios de leite”, andava pelas margens do Sena
sabendo que nunca conheceria o Vaza-Barris, que a inépcia governamental mandou
aterrar, e quando se deliciava nos restaurantes franceses, sentia saudade da
pousada de Maria, cujo cardápio era abundante e refinadíssimo, garantia do
pirão de bode e da moqueca de peixe inigualável.
As refeições com ele eram simples e significativas,
religiosas em si mesmas. “Não pode haver culto sem comida”, dizia e praticava,
e misturar esdruxulamente os sabores, sorvete com farinha (como frisou Vanessa
em seu tocante texto) era ritual inter-culinário. Tenho certeza que foi por aí
que começou o diálogo inter-religioso. A mesa farta é parte integrante dos
rituais afro-brasileiros, momentos em que a saciedade da fome de vida e da fome
de Deus é oferecida. Os cultos dominicais da Igreja Batista de Nazareth, onde
foi pastor durante trinta anos, e da Igreja de Antioquia, sempre terminam com
uma refeição comunitária.
Djalma não sabia caminhar com palavras vazias, enchia as
mesmas de vida, e concretizava sonhos em estruturas organizadas. Libertação era
mapa para visitar jovens presos pela ditadura militar e para acolher clandestinamente
perseguidos pelo regime. Evangelho era um convite à intensidade da meditação
sobre a Bíblia e a uma vida de oração e compromissos inteiros. Espiritualidade
era a misteriosa palavra sobre o mistério das noites em que se debruçava sobre
as raízes da vida e sobre os santuários, lugares escolhidos para o seu
recolhimento. Uma vez me mostrou, na fazenda, um espaço onde se recolhia em
solidão sagrada. Na exuberância de sua agenda, encontrou espaço para
realizarmos algumas coisas juntos. Mas, entre o que desejamos e não alcançamos,
um encontro sobre espiritualidade em que pudéssemos partilhar a nossa própria
vivência, quase chegou a acontecer. Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso foram
duas palavras que receberam forma, tempo e lugar especial em sua trajetória. O
prêmio nacional na área de direitos humanos, pelo seu combate contra a intolerância
religiosa, foi um pequeno reconhecimento pela grandiosidade de sua atuação.
No começo da noite do sábado, a enxurrada de homenagens, de
ideias e de lembranças, se tornaram em cachoeira, e chorar e orar eram rimas e
sinônimos. Não consegui dormir pela madrugada e estava com muita raiva, da
morte de crianças e da morte de Djalma, duas coisas inexplicáveis. Porque ele
era criança, amada por netos e outras pequeninas e pequeninos, e o seu jeito não
conseguia ser dissimulado, mesmo em meio a um momento sério, como se ser adulto
fosse um dos seus jogos infantis. Afinal, pastor que começa sermão com piada de
Zelezim, ou que peregrina para Canudos, ouvindo Mussão, não existem fáceis por
aí.
Na liquidez do meu sábado, lembrei de Djalma de calção,
tomando banho no Jorrinho e desejei que haja uma réplica no espaço celestial em
que transita agora. As águas pareciam revelar toda a sua pujança e toda a sua
alegria de viver. Então pensei que o Dique do Tororó, com suas belíssimas
imagens das entidades africanas, parecem com o meu amigo, e que naquelas águas
correm lágrimas do povo negro, oprimido por uma religiosidade disfarçada de
cristianismo. Tenho certeza de que, no sábado, o Dique do Tororó se rompeu e
suas águas se espalharam cidade e mundo afora, levando as lágrimas de quantos o
amaram e vão eternizar a saudade. E me senti desafiado a uma entrega radical à
vida, ao Pai e à sua misteriosa agenda. A sensação é de que a morte revela a
plenitude da vida. Nunca mais fui o que era e cada vez mais me sinto desafiado
a ser mais do que sou, porque conheci e fui acolhido por Djalma.
Recife, 25 de maio de 2020.
Uma narrativa fiel e verdadeira de um ser amado, que terminei conhecendo o pastor Djalma nesta descrição. Registro que o mundo ficou mais pobre com a ausência dele. Abraços amigo!
ResponderExcluirAmigos e irmão Marcos voce conseguiu traduzir quem é Djama Torres, é porque se eternizou em nossos corações.
ResponderExcluirQue Deus aquele que sabe profundamente os mistérios da existência, acolha a Djalma em seu palácio eterno, onde não há saudades, sofrimentos e dor. Conforto para todos que ficarão com a ausência física do amigo. Mas espiritualmente ele estará presente tidos os momentos do dia a dia de quem fica na caminhada da vida.
ResponderExcluirQue lindo e emocionante relato, Marcos! Consegui visualizar cenas através de suas palavras. Muitas verdades em seu texto. Um abraço! Vanessa Lima
ResponderExcluirServo fiel. Pastor amoroso
ResponderExcluirComo sempre sabes mexer conosco.Sentir cada palavra, chorei em cada vírgula. Sua tradução de Djalma foi a mais bela que li e pra quem teve o privilégio dessa intimidade, sai encantado e mais disposto a servir. Obrigado Marcos!
ResponderExcluirQue lindo meu primo querido. É difícil dar adeus para quem nunca mais veremos. Mas a própria palavra já diz " a Deus". Então Djalma foi ao encontro de Deus Enfim, resta-nos a lembrança e a alegria de um dia termos tido o prazerda convivência com alguém que nos ensinou e muito deixou de bom. Um beijo, Lucinha
ResponderExcluirBelíssima homenagem à Djalma. Grato por seu coração que "transborda de belas palavras". Bjs
ResponderExcluirMarquinhos, que bom que a dor pode ser suavizada entre lágrimas e risos, quando lembranças tão concretas nos levam a cada um desses espaços em tão boa companhia! Meus velhinhos queridos! Luciana Fica bem, tá!
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