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domingo, 3 de março de 2019

NETO, MORTE E JUSTIÇA: LULA, ARTUR E MORO

heloisatolipan

Marcos Monteiro

Misturar neto, morte e justiça neste texto é responsabilidade de quem escreve. E é carnaval, festa de todas e todos, que esses três foliões só podem participar mascarados. A morte, criança travessa, muitas vezes natural e até benevolente, ensaiou passos terríveis, aterrorizando as festas e atrapalhando o ritmo do bloco da esperança. Morreu Artur, o neto de Lula, o preso político perseguido sistematicamente pela justiça de Moro. A ala das crianças canta todos os chorinhos possíveis e a justiça esqueceu a balança e foi para as ruas com a espada, disfarçada de Marte.

As crianças que fomos e as que não conseguimos ser são liberadas durante o carnaval, catarse coletiva, estética meio psicanalítica, que distendemos sempre por bem mais dos que os três dias oficiais, prolongando um antes, para respeitar as cinzas do depois. O carnaval deste ano começou com gosto de cinzas.

Tenho um neto de quatro anos, Heitor,  e meu amigo José Renivaldo tem três ou quatro. Falo dele, desse Zé paraibano, porque anota as falas das netas e netos, para escrever sobre Agostinho, o de Hipona. Não sei se fez o doutorado na USP em Agostinho para compreender os netos, mas sei que através dos netos compreende melhor Agostinho. Estava pensando aqui que Agostinho não teve o privilégio de netos, porque o filho Adeodato morreu adolescente. Se ele pode ser considerado o pai da sociedade ocidental, somos uma civilização sem netos que, teimosamente, à sua revelia nos tornamos avós. E viva o carnaval e a transgressão.

Luiz Inácio estava preso pela justiça que persegue avós, mas foi liberado para o funeral de Artur, atingido por essa morte que não respeita crianças. Luís é Lula, porque no Nordeste todo Luís é Lula, como todo José é Zé. Com todo orgulho. Quem conhece a história mais pitoresca de Lula sabe do seu lado de criança e sabe que com Artur, neto e avô se confundiam. Porque os netos servem para nos guiar novamente à infância, idade em que o amor e o corpo são naturais.

Agostinho tentou nos legar uma história desconfiada do amor e do corpo. Amar a Deus acima das pessoas, amor sem carne, sem osso, sem sexo, mascarado de amor cristão. Mas, apesar de Agostinho, católicos e protestantes estaremos no carnaval. Os protestantes chegando devagar, mas um grupo cada vez mais expressivo. Afinal, é preciso respeitar Lutero e Calvino, os quais, apesar das reformas que empreenderam, foram mais agostinianos do que Agostinho e, apesar de rejeitarem o celibato, prescreveram uma sociedade tão casta que proibia as festas e a alegria. O juiz Moro é protestante, de tradição batista, os quais somos uns calvinistas meio bizarros. Então, eu me pergunto, como figura pública participará do carnaval? Com que fantasia? Ou se abrigará em um retiro, esses estranhos mosteiros protestantes, ocasionais?

Nessa mistura toda, o que está mesmo em pauta é o futuro, ou a sociedade de nossos netos. Lula tentou e conseguiu uma redistribuição de renda das mais inesperadas da história da humanidade, talvez porque acredite em outros mundos, como as crianças. Mas ficou cada vez mais claro que sem uma redistribuição de  justiça e de alegria não haverá uma redistribuição permanente de igualdade. A festa de todas, o carnaval, carrega as contradições da sociedade, o camarote e a pipoca, e todas as violências tentam dançar. E conseguem. Teremos no futuro um carnaval com mais equidade? O projeto em andamento não é esse.

O “Brasil acima de tudo” é um bloco de mascarados, cujo enredo  não é bom nem para as avós nem para os netos. Nem para o Brasil. Se depender do apoio dos protestantes e de parte dos cristãos, no futuro ideal não teremos mais carnaval. Teremos desfiles ou de militares, ou de trabalhadores autômatos. Aprenderemos a viver enfileirados, prestando continência e apertando parafusos, sob a sloganização educativa e a vigilância dos milicianos. Lula chorou descontroladamente no enterro de Artur. Um convite a chorarmos pelas nossas avós e pelos nossos netos.

Maceió, 03 de março de 2019

13 comentários:

  1. Tinha que vir de você um texto como este. Que bom que você existe e está mais vivo do que nunca. Diante de tudo isso que está aí, Lembrei-me do título de um filme do século passado :"O Estigma da Crueldade". Faz sentido? Um grande abraço, meu amigo.

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  2. Caro Marcos, cada texto seu é uma luz sobre o escuro, um tempero sobre o insosso,uma certeza sobre a dúvida. Obrigado amigo!

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  3. Bela reflexão meu amigo... Repleta de empatia e ao mesmo tempo com a pitada exata de amargor por uma humanidade tão perversa, vestindo a máscara da moral e dos bons costumes.. que Deus proteja o Brasil da maldade de gente boa!

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  4. Lindo texto querido Marcos ! Sua poesia trasgressora que mistura tudo e nos alivia a alma nesses tempos sombrios !

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  5. Muito bom e preciso o seu texto Marcos!

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  6. Marcos de forma sábia, pautada e afetiva coloca seu coração ao deleite de todos nós. Traz para essa batida uma dança entre opostos possíveis, em mesmo ritmo. Pois aos que nao dançam também espaha sua compreensão. Grato, amigo Marcos...

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    1. Seu texto me sintoniza na dor do avô e na tristeza do Brasil.

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  7. Lindo e triste... Como diria Rubem Alves. Caminhar com vc partilhando beleza e tristeza é um belo privilégio, amigo, por vezes belo e triste. Que A beleza nos alcance e tenha misericórdia de nós nestes tempos feios. Mui grara pelo texto. Sempre com amor por vc!

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  8. Parabéns querido Marcos! Em você a verve pulsa e ao mesmo tempo em que anuncia a possibilidade de um novo mundo, denuncia os dissabores do agora.

    Os descalabros dessa injustiça sofrerá o dano histórico, os justos se levantarão no dia do juízo, o Dia chamado hoje, onde netos e avós se alegram numa esperança que vence mais que a corrupção, vence a morte e seus agentes.

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  9. Pois é amigo, é tanta dor e sofrimento que me pergunto sobre o valor dessa religiosidade ascética que prega amor sem misericordia.

    Parabéns pelo texto!

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