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segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

ENTRE AS TERRAS E AS ÁGUAS

Filme Titanic

Marcos Monteiro

O culto da manhã é o programa de auditório dominical que não gosto de perder. Uma mistura de espetáculo e liturgia, de apresentação e interação, de homilia e conversa, em que oração, Bíblia, cânticos evangélicos, ou ecumênicos ou populares, podem se encontrar em uma proposta de evangelho que subverte lógicas e limites.

O local é o templo da Igreja Batista do Pinheiro. Wellington e Odja, pastor e pastora, têm carisma pessoal, conhecimento bíblico-teológico, compromisso pastoral e habilidade comunicativa suficientes para um projeto de enriquecimento familiar, em uma sociedade onde a religião é mercadoria cada vez mais lucrativa.

Mas optaram por um compromisso radical, visão teológica em que as vítimas de um sistema capitalista perverso são as prioridades da ação evangelizadora. Desse modo, o acolhimento a homossexuais, a solidariedade com a população de rua, a aproximação com o movimento dos sem-terra, uma pastoral feminista e uma pastoral da negritude, direcionam sua agenda, presença solicitada nas diversas lutas por direito da cidade de Maceió, Alagoas.

E o direito premente é a sobrevivência, direito elementar a chão, problema que ameaça todo um bairro, fissuras e rachaduras distribuídas por ruas, casas e apartamentos, sinal de fendas geológicas dispostas a abalar solo e subsolo. A extração sistemática de blocos de sal-gema, por cerca de quarenta anos, é apresentada como a possível causa maior dessa ameaça. Os sentimentos vão da insegurança ao pânico, e o êxodo aconselhado dos moradores já começou, até porque a temporada de chuvas já foi iniciada, provocando alagamentos na superfície e danos presumidos na estrutura geológica mais profunda.

Os moradores se sentem sem chão debaixo dos pés e as fissuras geológicas causam abalos psicológicos e rachaduras existenciais severas. Novamente, a força devastadora do Capital transforma em mercadoria de consumo solo, subsolo e vidas, mas os cultos precisam acontecer em meio a todo esse caos.

O de domingo passado evitou a tentação de vender amuletos e bênçãos de proteção e se tornou preparação pessoal e coletiva para a mobilização para uma luta que é de todas. Passeata de fiéis de todas as religiões, conclamação para a presença nas reivindicações junto ao poder constituído, regularização de propriedades visando reparações públicas e privadas, foram anunciadas. E houve as orações, os cânticos, as prédicas, em animada e fortalecedora celebração.

No meio à crise em que todas nos encontramos, demissões, doenças, depressão, causadas pelas fissuras políticas e econômicas provocadas pelo Capital, não mercadejar a fé significa participar solidariamente dos sofrimentos das vítimas e, no caso do pastor e pastora, ter seus salários atrasados. Salário de trabalhador, desses que não conseguem enriquecer ninguém.

Participei do culto com as imagens de solo, subsolo e chuvas na cabeça, terra e água, essa mistura de que é formada a estrutura do nosso planeta.  Estava encantado pela música, conduzida com técnica e sentimento. E lembrei de repente do filme “Titanic”. O templo da Igreja Batista é muito belo e pode afundar com o bairro, como o famoso navio.

O que fazer? No filme, em meio ao pânico provocado pela colisão com o iceberg, a orquestra resolveu continuar tocando, até o fim. Outros lutaram para salvar os mais vulneráveis, alguns abriram as grades que separavam viajantes de terceira classe, dando-lhes oportunidade de resistir e o protagonista do filme, o mocinho, segurou a mão da amada em um bote salva-vidas até morrer congelado. Ela sobreviveu. E muitas e muitos outros.

Então, se a terra ameaça desabar e as águas avançam sobre o nosso barco, cantaremos. E oraremos, e estudaremos os nossos mais preciosos textos bíblicos, e lutaremos de mãos dadas. E amaremos até o fim, e o amor vai sobreviver para que outras embarcações continuem singrando os mares, desmoralizando tempestades e icebergs.

Maceió, 25 de fevereiro de 2019

7 comentários:

  1. Amigo Marcos,

    O sistema capitalista destrói corpos e machuca almas. Este é um exemplo. Tenho acompanhado pela TV as notícias sobre o bairro Pinheiro. E, no seu blog, a notícia vem aprofundada!

    Abraços!

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  2. Belo texto, Marcos . Quando ouvi falar das fissuras em Pinheiros lembrei imediatamente da igreja Batista. Ao ler seu texto, celebro por ver/ler que ainda existem igrejas e pastores que sentem as dores e lutas do povo. E fazem dessas as suas também. Graças a Deus

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  3. É triste ver o que acontece no pinheiro sem se comover. Vivi 20 anos da minha vida no Pinheiro e sinto a dor de todos moradores.

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  4. Não dá nem pra imaginar o que vai no coração e na alma das pessoas que construíram suas vidas alí,se verem de repente tendo que deixar tudo para trás por causa da ação maléfica do homem corrompido. Não estava presente no culto mas imagino a presença de Deus alí só em ler as suas palavras. Que Deus abrace carinhosamente Wellington e Odja pelo engajamento e comprometimento com o verdadeiro Evangelho de Cristo.

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  5. É com igrejas assim que o evangelho se faz presença de Deus entre nós

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