convençãobatistaalagoana |
Marcos Monteiro
O acampamento foi uma impossibilidade.
A vida se aproximou apaixonada e se esparramou escandalosa
por cada grão de areia, cada onda do mar e cada pontinho do horizonte, na Praia
de Paripueira. O infinito se fez endereço e a eternidade relógio e o Acampamento
da Família IBP 2018, de 15 a 18 de novembro, se fez em quatro dias jardim
primordial, resumo de uma nova humanidade.
De mãos dadas, todas fomos pastoras e jardineiros e o nosso
pastor Wellington e nossa pastora Odja desinventou a hierarquia e inventou a
ciranda, para que plantássemos dançando, enquanto o Pr. Henrique Vieira, que
trouxe Carol e Maria, e Marcos e Carlos (os quais vimos com os nossos próprios
olhos, por fim), orando, palhaçando, magicando, abria sucos profundos em nossas
almas para textos da Bíblia e recados da vida.
Sorrimos muito e cantamos muito e dançamos muito e oramos
muito e choramos muito, sem soltar as mãos, nunca. Todas viemos de lugares
vulneráveis ao ódio e ao medo, periferias geográficas ou existenciais. Havia um
esforço de Lau e Sara, especialmente, para que ninguém deixasse de vir por
falta de dinheiro, desse papel esquisito que quem não tem não come. E viemos
muita gente, com e sem dinheiro, aprendendo a praticar, na história de Jesus
sobre o samaritano, a solidariedade universal, radical e arriscada.
Subvertemos o tempo, a lógica, o espaço, profanamos o
sagrado e sacralizamos o profano, no meio de uma cosmogênese, no centro de uma
eclesiogênese. No novo mundo, Deus era gente, de carne e osso, e trabalhava na
carpintaria, meio assim pedreiro de favela. Nem dono, nem patrão, nem rei ou
deputado, nem juiz de toga, pegou a prancha e foi surfar nas águas rasas de
Paripueira, porque sempre foi assim meio atrevido e surpreendente. E o Espírito
era cheio de curvas e tinha cabelos longos e barriga grande e seios túrgidos,
porque sempre grávida. Essa misteriosa mulher, Ruah Divina, parindo gente nova
e energia nova, o tempo todo.
Na nova igreja, idosos se abraçam apaixonadamente, e dupla
de crianças sertanejas canta a toada do boi cigano. E se louva a Deus com todo
instrumento musical e com hinos e cânticos derramados e com música popular e
com reggae. Sacralizamos o profano e profanamos o sagrado. Agamben acredita na
profanação como necessidade do novo mundo. Todo sagrado nasceu profano e
profanar é devolver ao povo o que lhe é de direito. O profano, para ele, advém
através da juventude, das novas gerações. Mas na nova igreja, crianças e idosas
profanam o sacro e sacralizam o profano e reinventam o tempo todo o
acolhimento. Ninguém solta as mãos.
Desse modo, nessa impossível Paripueira, nunca percebi
quando o culto começou ou quando a vida se interrompeu, tudo se misturou de tal
maneira que a palavra acolhimento era o modo como o amor gritava o tempo todo o
seu louvor à vida e sua oração a Deus. E veio o encerramento com o batismo e a
ceia. Muitos gestos e muitos ditos foram inesquecíveis e a mensagem do pastor
Henrique Vieira, no seu jeito e em suas palavras, ficaram gravadas
profundamente em nossas vidas. Mas o batismo e a ceia foram celebração final de
uma igreja e de um mundo necessitados urgentemente de subversão. E nós, os
batistas, temos um amor todo especial pelo batismo e pela ceia.
Qual o significado do batismo, quem batiza e quem deve ser
batizado? Há momentos em que esse significado fica mais nítido e talvez esse
seja um deles. O batismo lembra que quem segue a Jesus enfrenta todo dia a
violência da morte, porque o poder e a hierarquia religiosa ou política é
violenta. No batismo, somos crucificadas com ele. E ele foi crucificado porque
enfrentou o sistema que excluía os proscritos da sociedade. Quando cantamos que
Jesus derramou sua vida por nós, estamos dizendo simplesmente que ele não
aceitou fugir da luta contra todo o poder que matava, e todo poder hierárquico
mata. Então, qualquer um que segue a Jesus pode batizar e qualquer uma que quer
seguí-lo pode ser batizado. Interessante que isso é bem batista. O batismo é uma
lembrança sangrenta, e qualquer pessoa disposta a ser sangrada por amor a Jesus
e às amadas de Jesus pode ser batizada. Mergulhando nossos corpos sangrados,
lavamos as feridas do nosso corpo e da nossa alma, e completamos o milagre da
ressurreição, do sangue que se faz água e da água que se faz mar.
Encerramos com a ceia. Ordenança de Jesus, lembrança de pão
e vinho repartido entre todas e todos. Solidariedade radical, crianças, idosos,
homens, mulheres, homossexuais, negras, pobres, repetiam o milagre da
multiplicação do cuidado comunitário e ninguém soltava as mãos. Celebração da
vida, celebração da comunhão, mas novamente a vitória da ressurreição sobre a
morte violenta. O pão não é mais pão é corpo partido, torturado, sangrado e o
vinho é o próprio sangue. Somos o corpo de Cristo, mas corpo vulnerável,
ameaçado dia a dia pela violência dos poderosos. Repartir pão e vinho é
repartir corpo e sangue, é comprometer-se com a vida dos que sofrem até à
morte.
E quem são os que sofrem? Parece a pergunta sobre o próximo,
na parábola do samaritano. Entre os novos batizados, havia pessoas que sofriam
de depressão crônica e bipolaridade. Batizou-se uma budista. Sabem o que ela
disse? Não entendia muito bem o que estava acontecendo, mas tinha certeza de
querer seguir a Jesus. Sabem a orientação da pastora Odja? Que ela seguisse a
Jesus intensamente, mas não abandonasse a sua herança budista. Nesses tempos de
intolerância em que o diálogo inter-religioso é uma necessidade mundial, ela
tinha a oportunidade única de experimentar esse diálogo em sua interioridade
profunda e nos ajudar a compreender.
Bem, esse texto grande demais é pequeno demais para
descrever a intensidade de sentimentos e o universo de compreensão que nos
atingiu. Mas o batismo de uma jovem negra, homossexual, formada em psicologia,
e o seu testemunho, nos comoveu a todos. Enfrentando na pele e na vida racismo
e homofobia, nos descreve o seu crescimento em uma igreja pentecostal e a
rejeição dos próprios pais, a impossibilidade de viver integralmente a sua fé
cristã, proibida pela família e pela igreja. Sua namorada estava presente para
a alegria de todos nós. A sua família não, por solicitação da própria. Decisão
muito difícil, mas muito corajosa. Hoje, dia 20 é o dia da consciência negra e
estaremos juntos e juntas lutando contra todo tipo de preconceito. Ela chorou
muito, mas lágrimas foi o que não faltaram para regar o chão de nosso jardim do
amanhã.
O acampamento da Família da Igreja Batista do Pinheiro, na
Praia de Paripueira, litoral alagoano foi uma impossibilidade. Mas desvelou a
possibilidade de uma nova igreja e de um novo mundo.
Maceió, 20 de novembro de 2018
É muito bom reviver o acampamento em suas palavras. Foi tudo isso e muito mais, né? Afinal de contas as palavras nunca darão conta de expressar a Vida. Muito obrigada.
ResponderExcluirLindo resumo, pastor Marcos.
ResponderExcluir😍
ResponderExcluirMe deu vontade ardente de participar dessa dança sagrada... Quero ir no próximo. Rss
ResponderExcluirMarquinhos,
ResponderExcluirFiquei muito emocionada. Senti, na sua descrição, algo como a reinvenção de cada pesssoa ali presente, a reinvencao daquele coletivo e com isto, a possibilidade da reivencao da própria vida anunciada...
Um convite a todos nós que ali nao estávamos, a sermos tomados pela esperança, pela garra, pela fé... a nos diluirmos e termos coragem de nao termos contornos até a proxima conformação..e quiçá nao precisemos dela?
Abraço carinhoso a todos dessa igreja tao amada, tao ousada, tao gente!!!!
Que texto lindo, quanto afeto traduzido em palavras! Como foi bom relembrar (e reviver, por que não?) os momentos maravilhosos desses dias incríveis com essa comunidade que transborda amor e hospitalidade! 😍
ResponderExcluiramado Marcos, que descrição clara e emocionante desenhada por Marcos da igreja de Jesus reunida em Paripueira; foi como uma tocha que se acendeu na escuridão; foi como um terremoto na cadeia, de repente todos estavam soltos, mas ninguém sai, todos de mãos dadas; pareceria uma tribo cantando, dançando, brincando e dividindo sem barreiras sem saber quando o culto começou e terminou sem ter terminado; quem sabe um dia a tocha se acenderá em nosso quarto escuro de Natal?
ResponderExcluirMarcos...que texto maravilmaravilhoso e que bom ter estado presente para viver cada um desses momentos espetaculares. Bom demais encontrar você. Muito obrigada.
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