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sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Um ano que está acabando, amém.

notícias.uol
Marcos Monteiro

O ano vai chegando ao fim e não aguentamos mais. Se Zuenir Ventura elegeu 1968 como “o ano que não acabou”, 2016 é o ano que já queríamos acabado. A urgência por um novo ano é o apressamento por uma nova oportunidade e a curiosidade sobre projetos de restauração. Esse rito de passagem que se repete há tanto tempo, funciona exatamente assim: um desejo de passar uma esponja na vida e começar tudo novamente, quase como um novo “big bang”.

Este, foi o ano em que as máscaras foram tiradas e percebemos que o baile à fantasia não era entretenimento, mas necessidade. As máscaras grotescas escondiam faces monstruosas e se a humanidade do outro é o espelho da nossa própria humanidade, pelo menos em potencial, a nossa autoestima anda por um fio e a esperança adoecida necessitando de injeção para continuar.

Encarar as faces que estavam ocultas se constitui também batalha semântica, em que palavras e significados mostram deformações de diversos tipos. Dispor das palavras para dispor das consciências virou hábito político que alcança o cotidiano com a força de uma estrutura que mais esmaga porque inconsciente e invisível. O “capitalismo”, mais cruel e disforme do que nunca, por exemplo, não é palavra pronunciada comumente, ou por ser o espaço fractal e pantanoso em que nos movemos ou por ser um deus górgone que pode nos talhar em pedra se o fitarmos.

Assim, invisibilizado e silenciado, oculta-se o seu oponente crítico, o “socialismo”, e a luta titânica estabelecida acima, ao lado e dentro de nós. São poucos os que se assumem como socialistas. Comunistas? Nem pensar. O seu significado foi distorcido, ao ponto de ser confundido com o monstro que devora criancinhas, o que se aplica melhor ao seu antagonista, sistema que cria a cada bilionário, bilhões de crianças famintas e miseráveis pelo mundo.

Foi nesse cenário de velação e revelação que o ano de 2016 construiu uma estrutura semântica complexa e confusa, em busca de elucidação.

Foi o ano dos acordos. E a palavra remete a decisões acordadas na calada da noite, enquanto o povo estava dormindo. O processo de “acordar” é feito em colóquios, conversas de corredor, ou mesmo assembleias noturnas em lugares como apartamentos, pizzarias e até mesmo casas legislativas. Entre um cochilo e outro, os menos sonolentos ou mais sabidos vão costurando as decisões mais sérias do país, quase sempre danosas para o povo. “Acordo”, por conseguinte, pode ser definido como as decisões tomadas pelos acordados no cochilo do povo. O processo não é novo. A república foi um “acordo”. Acordaram literalmente o Marechal Deodoro, conselheiro imperial, para proclamar a República. De modo que “o país dormiu imperial e acordou republicano”.

O “acordo” da República foi um golpe, um dos tantos na história do país. O mais recente recebeu o epíteto de “impeachment”, em um processo de sinonímia violento, o qual pode ser considerado como o momento de confluência de uma série de outros golpes desferidos sobre o lombo do povo brasileiro, às vezes literalmente. Militares, com os seus golpes de baioneta; a polícia militar, braço repressor do executivo, com seus golpes de cassetete; pastores fundamentalistas vociferantes, com os golpes do seu cajado, o poder judiciário, com o golpe dos seus martelos sobre processos duvidosos, vêm sendo acionados constantemente contra a possibilidade de um projeto de esquerda, supostamente em andamento nesses últimos anos.

E aqui entramos em um campo semântico dos mais confusos. Esquerda, direita, centro, extrema direita, são mais fáceis de serem entendidos dentro do âmbito do futebol do que no espaço político. Essa confusão já vem de muito tempo, desde o começo da chamada política de alianças e das estratégias de governabilidade, quando políticos de currículo de esquerda propunham ações mais ortodoxas do que as de Adam Smith, capazes de nos deixar com saudade de Roberto Campos, o economista liberal oficial da ditadura, cujas propostas assustavam até as crianças de berço. O embate semântico sobre o significado de “esquerda” deve ser decisivo nesse ano que se aproxima velozmente.

Há outras palavras à procura de significação, como “moralidade”, usada imoralmente para tanta coisa e que definitivamente não tem Moro como raiz etimológica, visto a seletividade de conduções coercitivas, prisões e vazamentos, e a repreensão do supremo sobre a sua utilização da justiça de forma injusta. Porém, mais uma vez, a palavra “democracia” é a que necessita de um modo urgente de entendimento. A diferença entre democracia representativa e participativa, democracia direta e indireta, lembra até da ditadura brasileira, definida por si mesma como “democracia relativa”. Fazendo uma ilação indevida, e usando uma antiga brincadeira, estou quase disposto a concordar que a nossa democracia brasileira, com um executivo confuso, um legislativo venal e um judiciário imprevisível, é o “governo do demônio”.

Mas há muitos sinais de esperança, neste ano novinho que assumimos mais uma vez. A reação organizada dos estudantes contra uma PEC catastrófica, o ressurgimento da força dos movimentos sociais, a possibilidade de articulações amplas pelos setores mais combativos e conscientes da sociedade, os embates e conflitos assumidos dentro dos espaços que constituem a sociedade civil, apontam para uma curva crítica, após a qual uma nova sociedade possa ser engendrada de modo mais sólido. O cenário internacional também não está claro. Mas sabemos que o povo tem limites em sua paciência histórica, de modo que podemos sempre esperar e sempre lutar por um mundo melhor.


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