Marcos Monteiro*
Considero a história a seguir uma das mais belas que
coleciono e que ouvi das pessoas diretamente envolvidas. Como não pedi devidas
autorizações vou embaralhar nomes e lugares para não ultrapassar limites de
escritor e de amigo. Certamente, pessoas vão se reconhecer e vão criar compreensões
pertinentes e impertinentes diante da narrativa.
Em um acampamento de crianças de uma igreja batista o tema
condutor era o livro de Apocalipse e a tarefa das crianças era recriar a Nova Jerusalém, a cidade ideal que
desce dos céus para a terra. O que entra e o que não entra, quem fica de dentro
e quem fica de fora da cidade era o exercício a que se aplicaram com
entusiasmo. Em um dado momento, uma das crianças pega um bonequinho e bota no
lixo, afirmando que homossexuais não poderiam fazer parte da cidade de Deus.
Então, Claudinho, imediatamente retira o bonequinho do lixo indignado e afirma:
– “Não. Meus pais entram sim na cidade. Amo muito meus pais
e eles são pessoas do bem”.
A reação das outras crianças foi a esperada. Bem, esperada
somente de crianças. Concordaram imediatamente que os dois pais gays deviam
fazer parte da cidade porque acima de tudo eram os pais de Claudinho e crianças
são aquele tipo de pessoa que ainda acha que as relações afetivas estão acima
de qualquer outra coisa e que as pessoas queridas não carregam rótulos, têm
nomes próprios. No olhar ainda puro das crianças, Jean e Samuel vão fazer parte
da cidade santa.
A Nova Jerusalém é a maquete cristã do novo mundo.
Surpreendentemente, os cristãos são atualmente talvez o grupo mais empenhado em
colocar na lata de lixo tanto os homossexuais quanto as famílias constituídas
por pessoas do mesmo sexo e a nossa esperança é que as igrejas aprendam com
Claudinho e as outras crianças a mudar os critérios de inclusão de pessoas na
nova sociedade. Revisar os manuais substituindo rótulos de diversas naturezas por
valores éticos como justiça, verdade e amor não será tarefa fácil para quem
acumulou ao longo do tempo montanhas de argumentos para justificar preconceitos
e discriminações especialmente de ordem sexual.
Na televisão, pastores evangélicos conclamam os fiéis a
defenderem a família e paradoxalmente atacam as famílias constituídas por
homossexuais. Neste mês de outubro, o Sínodo do Vaticano se debruça sobre uma
pastoral da família e se afirma em algum momento o acolhimento amoroso no seio
familiar das pessoas com “tendência homossexual” declara veementemente: «Não
existe fundamento algum para equiparar ou estabelecer analogias, mesmo remotas,
entre as uniões homossexuais e o plano de Deus sobre o matrimônio e a família».
Portanto, evangélicos e católicos colocam as famílias de homossexuais na lata
de lixo, e isso em nome de Deus e da família.
Ao se excluir do conceito de família um número considerável
de pessoas que vivem a sua experiência familiar de modo diferente da normativa
está se exercendo uma violência de natureza simbólica que reforça e induz
violências físicas. Interditando-se o corpo, dogmaticamente se abandona esse
mesmo corpo e se abre o caminho para o cerceamento do prazer e para a redução
da vida. O momento de se conceituar tanto pode servir a um respeito dinâmico à
história e à existência quanto a uma interrupção brutal da exuberância e da
criatividade da vida. Reduzir o conceito de família sem respeitar a história de
como as pessoas vêm se organizando familiarmente restringe o campo de direitos
que sustenta a vida e que transforma o mundo em um melhor lugar de se viver.
Estive por esses dias examinando abordagens sobre família de
natureza sociológica, psicológica, antropológica e teológica. Todas têm uma
tendência preponderante ao silêncio sobre a diversidade de possibilidades de
organização familiar e ignoram as formações de famílias homossexuais com
algumas poucas exceções. Por isso, não pude evitar a lembrança da música de
Gonzaguinha que nos conclama a “viver e não ter a vergonha de ser feliz” e
ficar com a pureza da resposta das crianças: “É a vida e é bonita e é bonita”.
E gostei de alguma coisa que o papa Francisco disse, embora sem nenhuma
esperança de grandes mudanças dos dogmas cristãos.
Esse papa latino-americano de grande coração e grande
coragem pessoal disse o seguinte: "Se
olharmos para as crianças através dos olhos de Jesus, podemos entender como,
defendendo a família, protegemos a humanidade". Então, gostaria de
entrar em diálogo com ele e afirmar o seguinte: “Se olharmos para Jesus e para
a família com os olhos das crianças podemos entender melhor o que significa ser
cristão e ser humano”. Para boa parte da sociedade e para a maior parte da
igreja cristã os homossexuais não deveriam ter direitos, ou então ser
considerados cristãos e pessoas de segunda categoria, dignos de compaixão e até
de cura. E eu fico com a pureza do olhar de Claudinho, orgulhoso de seus dois
pais, Jean e Samuel, homens dignos e afetuosos, cuidadosos em providenciar espaço
afetivo suficiente para o crescimento e maturação de seu filho.
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