Precisei mudar o celular porque o
antigo tem teclas que não funcionam e há quase dois meses adquiri um novo com
três mil oitocentos e quarenta e sete funções das quais já aprendi a usar duas.
O ano tem cinquenta e duas semanas. Então, nesse ritmo, aprendendo uma função a
cada três semanas, fiz os cálculos à caneta, precisarei de duzentos e vinte e
seis anos para aprender todas as funções. Uso o celular especialmente para
telefonar, mas até agora não aprendi nem a ligar nem a atender. Mas continuo
tentando aprender a usar o aparelho.
Consulto o manual com atenção e
quando penso que estou perto de configurar data e hora, a lanterna acende.
Tentei agendar o despertador e irrompeu uma voz grave, antiga, cantando “Eu não
sou cachorro não” e quando tentei tirar uma foto do ambiente irrompeu na tela
um vídeo com Aécio bêbado, e uma voz suave ao fundo, “não bote o dedo na minha
cara, tchê”. Quando achei que iria conseguir um “selfie” apareceu uma
radiografia da minha caixa torácica. Bem, exceto por uma mancha que ocupa quase
dois lóbulos inteiros e uma série de pontinhos pretos no dito cujo e suas adjacências,
foi bom perceber que o meu pulmão está perfeito.
Foi aí que o meu dedo deslizou em
algum lugar e apareceu o barulho de uma sirene policial e um letreiro luminoso piscando
na tela: “Você deseja mesmo disparar uma bomba nuclear?”. Pensei um pouco e
respondi que sim. Então ele me perguntou os três primeiros números do meu CPF,
o nome do meu pai, o nome de minha mãe, a cidade em que nasci, o dia o mês e o
ano do meu nascimento, e a tudo respondi pausadamente. Então na tela apareceu a
mensagem em letras garrafais: “INICIANDO A OPERAÇÃO HECATOMBE FINAL”
.
Fiquei aguardando e de repente
apareceram no meu celular vozes diversas. Uma parecia de chinês, ou de japonês,
outra de alemão, outras de francês, espanhol, italiano, também línguas
estranhas e por fim um inglês bem pronunciado que parecia a voz de Barack
Obahma e dizia claramente: “I,m fucked”. Depois de um bocado de barulhos
que pareciam mais estática do que outra coisa entrou um pedaço da quinta
sinfonia de Beethoven e uma nova mensagem: “OPERAÇÃO CANCELADA”.
Fiquei um pouco frustrado, mas
pelo menos era bom saber que o sistema antiterrorismo às vezes funciona. Mas
abortada minha tentativa de guerrilha virtual, o jeito era continuar procurando
entender as tantas funções. Então me veio um pensamento: se eu estava irritado
e meio impaciente com o celular, essa bendita máquina talvez estivesse à beira
da exasperação e então apareceu a nova mensagem de tela: NÃO AGUENTO MAIS ESSE
USUÁRIO. TROCAR IMEDIATAMENTE DE SER HUMANO.
Essa é boa! Bem-vindo ao mundo dos Androides, qualquer aplicativo para nos tornar um pouco mais primitivo e natural vai nos forçar a reaprender a sermos o que um dia fomos, acho eu, pelo menos li em alguns livros e filmes e histórias, quando a vida era infinitamente mais simples em várias área e mais prazerosa de viver, se minha infância de rua era primitiva, eu gostava muito, agora "sobrevivo também através de aparelhos". Rs, abraço Marcos.
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