Setur.rs |
Carlos era o peregrino, aquele que sabia
de peregrinação mais do que todo o mundo, sem que ninguém precisasse ensinar
porque já nasceu peregrino, sabendo que a vida é uma infindável peregrinação.
Quando todos nós do grupo de peregrinas
e peregrinos do Nordeste fizemos a peregrinação de julho de 2007,
Carlos foi o peregrino de sempre, cantador, falador, reclamador, elogiador, mas
acima de tudo peregrinador.
Impaciente conosco, aprendizes de peregrinos,
sempre seguia peregrinando. Dormir, talvez, mas só de vez em quando, comer,
somente se tiver, meditar e fazer silêncio, bastam alguns segundos, nada pode
atrapalhar o ato da peregrinação.
Carlos seguia na frente, às vezes
perdido de nossa vista, resmungando e peregrinando. Perto de nós, tocava o
pandeiro e compunha a canção, no ritmo do momento, no sabor do caminho
caminhante.
Na caminhada, carregava com leveza o seu
passado, desde que ninguém atrapalhasse seu projeto de caminhar, o que infelizmente
sempre acontecia. Os outros dormiam demais, comiam demais, descansavam demais,
sobrando pouquíssimo tempo para os caminhos. Porque Carlos dormia depois e
acordava antes, cantando com sua voz rouca qualquer canção que nos despertasse
a todos: era preciso peregrinar.
Antes do sol, antes do vento, antes da
chuva, era a hora de começar e parar somente depois que a última estrela
dormisse. Porque viver era caminhar.
Não sei que crime Carlos cometera, mas
nenhum pode ter sido maior do que o crime que cometeram de o trancafiarem em
uma penitenciária por intermináveis vinte anos. Imagino Carlos caminhando em
círculo no exíguo espaço de uma cela superlotada, abrindo caminho aborrecido
entre os outros prisioneiros, não dispostos a percorrer caminhos tão impossíveis.
De
volta à vida e a sociedade, Carlos encontrou o Caminho e o Jesus do caminho, e
tornou-se o Carlos-de-todos-os-caminhos, o Carlos-do-sempre-caminhar.
Nos diversos caminhos em que caminhamos
juntos, não sabíamos o que fazer com Carlos, mas não imaginávamos caminhar sem
Carlos. Carlos era aquela figura complexa. Simples e complicada, ao mesmo
tempo, servo de todos e senhor de si, que, rotulado de ignorante, sabia que
sabia mais do que todos nós juntos, porque sabia a única coisa importante: sabia
caminhar.
Impaciente com a nossa ignorância,
tentava nos revelar o mais simples segredo da vida. O problema não são os
caminhos, o problema é o lugar. O lugar é a tentativa absurda de encerrar o
caminho e de fixar as pessoas. Um caminho nunca tem fim e pessoas não se
plantam, plantam-se árvores. Mas apesar dessa ser a sabedoria mais antiga e
mais elementar da humanidade, insistem ainda em finalizar os caminhos e plantar
as pessoas.
Ninguém tem dúvida, Carlos cansou.
Cansou de peregrinar na terra, chegou ao seu limite de suportação e resolveu
peregrinar nos caminhos do céu. O peregrino Paulo César foi quem nos advertiu:
ele havia nos avisado, era a sua última peregrinação.
Agora, temos certeza, começa a saciar a
sua sede de infinito, porque está onde os caminhos nunca terminam e onde não há
falta de caminhos.
Nós, por aqui mesmo, continuaremos a
peregrinar, lembrados do seu pandeiro, saudosos da sua rouca voz reclamante,
tardiamente atentos às lições que nos deixou. Quando uma folha se bulir lá na
frente, quando uma árvore se mexer ao nosso lado, quando ouvirmos um assovio
inesperado, abriremos um sorriso largo.
E aquilo que desconfiávamos se fará
certeza. Carlos continua peregrinando ao nosso lado e à nossa frente.
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