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terça-feira, 20 de novembro de 2018

CONTRA TODAS AS IMPOSSIBILIDADES

convençãobatistaalagoana


Marcos Monteiro

O acampamento foi uma impossibilidade.

A vida se aproximou apaixonada e se esparramou escandalosa por cada grão de areia, cada onda do mar e cada pontinho do horizonte, na Praia de Paripueira. O infinito se fez endereço e a eternidade relógio e o Acampamento da Família IBP 2018, de 15 a 18 de novembro, se fez em quatro dias jardim primordial, resumo de uma nova humanidade.

De mãos dadas, todas fomos pastoras e jardineiros e o nosso pastor Wellington e nossa pastora Odja desinventou a hierarquia e inventou a ciranda, para que plantássemos dançando, enquanto o Pr. Henrique Vieira, que trouxe Carol e Maria, e Marcos e Carlos (os quais vimos com os nossos próprios olhos, por fim), orando, palhaçando, magicando, abria sucos profundos em nossas almas para textos da Bíblia e recados da vida.

Sorrimos muito e cantamos muito e dançamos muito e oramos muito e choramos muito, sem soltar as mãos, nunca. Todas viemos de lugares vulneráveis ao ódio e ao medo, periferias geográficas ou existenciais. Havia um esforço de Lau e Sara, especialmente, para que ninguém deixasse de vir por falta de dinheiro, desse papel esquisito que quem não tem não come. E viemos muita gente, com e sem dinheiro, aprendendo a praticar, na história de Jesus sobre o samaritano, a solidariedade universal, radical e arriscada.

Subvertemos o tempo, a lógica, o espaço, profanamos o sagrado e sacralizamos o profano, no meio de uma cosmogênese, no centro de uma eclesiogênese. No novo mundo, Deus era gente, de carne e osso, e trabalhava na carpintaria, meio assim pedreiro de favela. Nem dono, nem patrão, nem rei ou deputado, nem juiz de toga, pegou a prancha e foi surfar nas águas rasas de Paripueira, porque sempre foi assim meio atrevido e surpreendente. E o Espírito era cheio de curvas e tinha cabelos longos e barriga grande e seios túrgidos, porque sempre grávida. Essa misteriosa mulher, Ruah Divina, parindo gente nova e energia nova, o tempo todo.

Na nova igreja, idosos se abraçam apaixonadamente, e dupla de crianças sertanejas canta a toada do boi cigano. E se louva a Deus com todo instrumento musical e com hinos e cânticos derramados e com música popular e com reggae. Sacralizamos o profano e profanamos o sagrado. Agamben acredita na profanação como necessidade do novo mundo. Todo sagrado nasceu profano e profanar é devolver ao povo o que lhe é de direito. O profano, para ele, advém através da juventude, das novas gerações. Mas na nova igreja, crianças e idosas profanam o sacro e sacralizam o profano e reinventam o tempo todo o acolhimento. Ninguém solta as mãos.


Desse modo, nessa impossível Paripueira, nunca percebi quando o culto começou ou quando a vida se interrompeu, tudo se misturou de tal maneira que a palavra acolhimento era o modo como o amor gritava o tempo todo o seu louvor à vida e sua oração a Deus. E veio o encerramento com o batismo e a ceia. Muitos gestos e muitos ditos foram inesquecíveis e a mensagem do pastor Henrique Vieira, no seu jeito e em suas palavras, ficaram gravadas profundamente em nossas vidas. Mas o batismo e a ceia foram celebração final de uma igreja e de um mundo necessitados urgentemente de subversão. E nós, os batistas, temos um amor todo especial pelo batismo e pela ceia.

Qual o significado do batismo, quem batiza e quem deve ser batizado? Há momentos em que esse significado fica mais nítido e talvez esse seja um deles. O batismo lembra que quem segue a Jesus enfrenta todo dia a violência da morte, porque o poder e a hierarquia religiosa ou política é violenta. No batismo, somos crucificadas com ele. E ele foi crucificado porque enfrentou o sistema que excluía os proscritos da sociedade. Quando cantamos que Jesus derramou sua vida por nós, estamos dizendo simplesmente que ele não aceitou fugir da luta contra todo o poder que matava, e todo poder hierárquico mata. Então, qualquer um que segue a Jesus pode batizar e qualquer uma que quer seguí-lo pode ser batizado. Interessante que isso é bem batista. O batismo é uma lembrança sangrenta, e qualquer pessoa disposta a ser sangrada por amor a Jesus e às amadas de Jesus pode ser batizada. Mergulhando nossos corpos sangrados, lavamos as feridas do nosso corpo e da nossa alma, e completamos o milagre da ressurreição, do sangue que se faz água e da água que se faz mar.

Encerramos com a ceia. Ordenança de Jesus, lembrança de pão e vinho repartido entre todas e todos. Solidariedade radical, crianças, idosos, homens, mulheres, homossexuais, negras, pobres, repetiam o milagre da multiplicação do cuidado comunitário e ninguém soltava as mãos. Celebração da vida, celebração da comunhão, mas novamente a vitória da ressurreição sobre a morte violenta. O pão não é mais pão é corpo partido, torturado, sangrado e o vinho é o próprio sangue. Somos o corpo de Cristo, mas corpo vulnerável, ameaçado dia a dia pela violência dos poderosos. Repartir pão e vinho é repartir corpo e sangue, é comprometer-se com a vida dos que sofrem até à morte.

E quem são os que sofrem? Parece a pergunta sobre o próximo, na parábola do samaritano. Entre os novos batizados, havia pessoas que sofriam de depressão crônica e bipolaridade. Batizou-se uma budista. Sabem o que ela disse? Não entendia muito bem o que estava acontecendo, mas tinha certeza de querer seguir a Jesus. Sabem a orientação da pastora Odja? Que ela seguisse a Jesus intensamente, mas não abandonasse a sua herança budista. Nesses tempos de intolerância em que o diálogo inter-religioso é uma necessidade mundial, ela tinha a oportunidade única de experimentar esse diálogo em sua interioridade profunda e nos ajudar a compreender.

Bem, esse texto grande demais é pequeno demais para descrever a intensidade de sentimentos e o universo de compreensão que nos atingiu. Mas o batismo de uma jovem negra, homossexual, formada em psicologia, e o seu testemunho, nos comoveu a todos. Enfrentando na pele e na vida racismo e homofobia, nos descreve o seu crescimento em uma igreja pentecostal e a rejeição dos próprios pais, a impossibilidade de viver integralmente a sua fé cristã, proibida pela família e pela igreja. Sua namorada estava presente para a alegria de todos nós. A sua família não, por solicitação da própria. Decisão muito difícil, mas muito corajosa. Hoje, dia 20 é o dia da consciência negra e estaremos juntos e juntas lutando contra todo tipo de preconceito. Ela chorou muito, mas lágrimas foi o que não faltaram para regar o chão de nosso jardim do amanhã.

O acampamento da Família da Igreja Batista do Pinheiro, na Praia de Paripueira, litoral alagoano foi uma impossibilidade. Mas desvelou a possibilidade de uma nova igreja e de um novo mundo.

Maceió, 20 de novembro de 2018


8 comentários:

  1. É muito bom reviver o acampamento em suas palavras. Foi tudo isso e muito mais, né? Afinal de contas as palavras nunca darão conta de expressar a Vida. Muito obrigada.

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  2. Me deu vontade ardente de participar dessa dança sagrada... Quero ir no próximo. Rss

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  3. Marquinhos,
    Fiquei muito emocionada. Senti, na sua descrição, algo como a reinvenção de cada pesssoa ali presente, a reinvencao daquele coletivo e com isto, a possibilidade da reivencao da própria vida anunciada...
    Um convite a todos nós que ali nao estávamos, a sermos tomados pela esperança, pela garra, pela fé... a nos diluirmos e termos coragem de nao termos contornos até a proxima conformação..e quiçá nao precisemos dela?
    Abraço carinhoso a todos dessa igreja tao amada, tao ousada, tao gente!!!!

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  4. Que texto lindo, quanto afeto traduzido em palavras! Como foi bom relembrar (e reviver, por que não?) os momentos maravilhosos desses dias incríveis com essa comunidade que transborda amor e hospitalidade! 😍

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  5. amado Marcos, que descrição clara e emocionante desenhada por Marcos da igreja de Jesus reunida em Paripueira; foi como uma tocha que se acendeu na escuridão; foi como um terremoto na cadeia, de repente todos estavam soltos, mas ninguém sai, todos de mãos dadas; pareceria uma tribo cantando, dançando, brincando e dividindo sem barreiras sem saber quando o culto começou e terminou sem ter terminado; quem sabe um dia a tocha se acenderá em nosso quarto escuro de Natal?

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  6. Marcos...que texto maravilmaravilhoso e que bom ter estado presente para viver cada um desses momentos espetaculares. Bom demais encontrar você. Muito obrigada.

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