quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Quando brilha o olhar

maantunesemversoeprosa

“O olhar de Ianasi regula o brilho do sol”. A frase cuidadosa de Rubengálvio não descrevia claramente o que sempre acontecia e o pessoal tentava melhorar: “O olhar de Ianasi acende a lua quando desaparece o sol”, ou “Ianasi clareia o mundo pelo olhar”, ou ainda, “a energia do sol vem do brilho do olhar de Ianasi”, e ainda e ainda, “o sol alimenta a vida e o olhar de Ianasi alimenta o sol”.

Gerlúcido garante que as frase sobre Ianasi dão um livro e propõe uma espécie de ciranda musical, recorrente e inacabada, para homenagear a responsável maior pela iluminação do ambiente da turma. Ainda pensou em usar a sua mania de organizar hipóteses científicas para medir a relação existente entre o olhar de Ianasi e mudanças ecológicas. A impressão de que aparecem nuvens no céu quando o semblante de Ianasi se anuvia e de que a luz se apaga quando fecha os olhos não recebeu medição comprovada. Também a turbulência do clima planetário, aquecimento global, terremotos, tsumanis, acontecendo em abundância exatamente em tempos que o olhar de Ianasi sofria uma espécie de curto-circuito, parecia hipótese temerária, como parecia temerário associar o choro que apareceu inesperado no rosto dela com a chuva que caiu torrencialmente. Bem, por estranha coincidência, quando parou de chorar parou de chover.

Ianasi não era feita somente de olhar: ela sorria e sua gargalhada cristalina, intermitente e de diferentes durações, fornecia melodias para canções populares ou eruditas. O pessoal sentia vontade de dançar quando ela sorria. Além de tudo isso, Ianasi era belíssima de corpo e de rosto, o que lhe trazia alguns problemas que foi aprendendo a administrar. Todo mundo se apaixonava por Ianasi e ela recebia cantadas, manhã tarde e noite (até de madrugada já aconteceu) de homens e mulheres de todas as idades, tamanhos e etnias. Então, ela aprendeu a esperar e a gostar de cada cantada que aparecia, nos momentos e das pessoas mais inesperadas. Somente duas pessoas nunca lhe cantaram: Gerlúcido e Filippo. De Gerlúcido, intérpretes e hermeneutas disputam sobre a possibilidade de uma certa frase ter sido uma espécie de cantada no estilo gerlúcido. A ela voltaremos mais tarde.

Filippo, bem, Filippo era considerado pelas meninas um moreno dengoso, falso tímido, que atraía e seduzia, para desespero dos homens que não entendiam nunca seu poder de sedução. Quando encontrou Ianasi não lhe fez proposta nem declaração, colocou a mão sobre os seus ombros, beijou-lhe a face e, como ela não reclamou, beijou-lhe a boca. Quando ela abriu os olhos e sorriu surpresa, invadiu o seu sorriso com um beijo tão profundo e tão prolongado que a turma e o tempo parou. O sol, estupefato, quase se descontrolou, despejando calor de meio-dia em hora de pôr-de-sol. Desde então, Filippo nunca mais largou Ianasi. Deixe eu dizer de outro jeito. Filippo larga Ianasi para comer, dormir, estudar e trabalhar, mas sua ocupação de verdade é Ianasi, o resto é intervalo.

No começo, sentia um ciúme desesperado porque ninguém deixou de cantar Ianasi por causa de sua companhia. Reclamou, chorou, partiu pra briga com alguns até se acostumar. Bem, não foi bem assim. Desenvolveu um tipo de resposta que ninguém sabe do que chamar pois, como descobriu Gerlúcido, não existe antônimo para “ciúme”. Como denominar esse tipo de comportamento? Chegam os dois juntos em qualquer ambiente e começam a chover galanteios e cantadas. Filippo? Impávido! Depois de algum tempo, o moreno começa a ficar impaciente e começa a partir para algumas pessoas, indagando: “Por que não cantou minha mulher? O que tem contra ela?” Com alguns já ficou muito irritado e até tentou sair no braço, dando suficiente trabalho para a “turma do deixa-disso”.

Pois bem, Gerlúcido desistiu de investigar ligações ecológicas com o olhar de Ianasi, mas não desistiu de criar hipóteses, porque não é de abandonar suas mais queridas manias. Abandonou a investigação de “nexos causais inobserváveis” e procurou descobrir a causa real do brilho do olhar de Ianasi. A descoberta que o levou no caminho de uma série de “hipóteses gerlúcidas” pode-se chamar de casual, mas com certeza foi resultado do seu olhar investigativo bem treinado.

Pois bem, um belo dia estava Ianasi sentada com a turma na mesa, comendo, bebendo, brilhando e sorrindo, acompanhada de Filippo (claro!), quando Gerlúcido observou um aumento súbito do brilho do olhar. Ao mesmo tempo, percebeu um movimento das belas pernas da bela mulher, afastando em quase-chute um gato que tentava se enroscar em seus pés. A partir de então, começou a anotar cuidadosamente esses momentos de elevação de brilho de olhar e percebeu que podia associá-los cada a algum ato ou gesto de rejeição de gatos, cachorros, crianças e papagaios.

Daí para as hipóteses foi um salto. A primeira era bem estranha: A variável responsável pela geração do brilho do olhar de Ianasi seria a sua crueldade. Dizendo de outra forma: o brilho do olhar de Ianasi poderia até alimentar o brilho do sol, mas era alimentado por sua crueldade dirigida especialmente para gatos, cachorros, crianças e papagaios. Por incrível que pareça, esses tais animais sempre procuram fascinados essa bela mulher, também apaixonados, também seduzidos por seu brilho, beleza, alegria e paixão.

Para compreender essa relação, Gerlúcido propõe a hipótese dos “fluxos dialético-existenciais gerlúcidos” agindo de modo complexo dentro de um “campo gerlúcido dialético-existencial”. Não sei se consigo explicar bem tudo isso. Mas atos perceptivos, atos cognitivos, atos volitivos, atos emocionais, são fluxos dinâmicos organizados em pares interdependentes de modo complexo. Por exemplo, o fluxo emocional dialético existencial amor-ódio: Para se muito amar precisa-se muito odiar e às vezes esse fluxo se dirige para a mesma pessoa. Como dá para perceber o fluxo alegria-crueldade seria atípico ou complexo, explicável apenas pelas interações criadas dentro do campo dialético-existencial com outros fluxos.

Mesmo assim, Gerlúcido garante que há dados suficientes para corroborar as suas hipóteses, podendo inclusive estendê-las para o caso de Jutizildo, Etenildo ou Cremildo. Na nossa personagem em pauta, basta ver o que acontece quando, cercada da admiração das crianças, manda calarem a boca, ficarem quietas ou qualquer coisa assim. Ou quando afasta gatos, cachorros e papagaios, com a mão ou com o pé. O seu olhar normalmente brilhante se torna fulgurante, então.

Encadernado com esmero, Gerlúcido ofereceu um livro de cerca de 830 páginas com as anotações manuscritas sobre sua pesquisa. Nas páginas introdutórias, a frase considerada por estudiosos como a cantada gerlúcida: “posto às investigações, disposto ao sofrimento, proposto à lealdade, posposto às paixões”. Nas conclusões, a explicação das cantadas e suas funções no fluxo gerlúcido crueldade-brilho no olhar. A elegante rejeição de cada cantada é muito cruel, como é cruel para cada apaixonado ou apaixonada a sua paixão por Filippo. É crueldade extremada que Ianasi se baste e é crueldade maior para toda a turma que Filippo lhe baste.


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